ementa
rio de janeiro, 12 de outubro de 2013
hoje é dia das crianças. e daqui a três dias é comemorado
o dia do professor. é curioso que estas datas estejam assim tão próximas.
talvez não se fale muito sobre isso, sobre o fato de estarem tão próximas,
essas duas datas. mas me chama a atenção. achei melhor escrever a vocês. minha
ação para este nosso projeto em construção será sobre aquilo que meu olhar
vislumbrou após gastar a história da explosão do maracanã. eu desejo falar
sobre a educação brasileira. eu preciso falar sobre isso. falar sobre a
educação, via teatro, é aproximar o meu ofício daquilo que acredito ser a sua
função.
em novembro de 2011, após a noite de estreia de sinfonia
sonho, voltando para casa, eu passei – como sempre passo – pelo estádio mário
filho, o maracanã. eu estava angustiado e surpreso, ainda com a lembrança
fresca de algum horror que sinfonia havia trazido à vista daquelas pessoas que
tinham nos assistido. eu estava me sentindo responsável e – ao mesmo tempo –
irresponsável. irresponsável por não ter sabido – com antecedência – que é
muito sério esse negócio de fazer teatro.
então, cruzando o maracanã, já em obras para a copa do
mundo, eu desejei acentuar o risco da coisa toda, eu desejei falar sobre aquilo
que pudesse me ser ainda mais complexo e algo cujo tamanho eu não pudesse
abraçar. eu quero correr o risco de ser irresponsável, para descobrir a real
necessidade de ser responsável. eu desejei tudo isso e é isso que me coloca
aqui, neste agora, quando nós, sentados nesta sala meio suja, meio feia, meio
em obra, compartilhamos mais e mais desejos. eu desejo. eu não luto contra o
meu desejo. eu dou as mãos a ele e vou inteiro, porque essa é a minha maneira
de ser performance. seguindo o roteiro de minhas pulsões.
quando algo me fascina, quando algo me arrebata, eu perco
– no exato instante da fascinação – o poder de atribuir sentido àquilo que vi.
aquilo que me fascinou abandona a sua natureza sensível, abandona o próprio
mundo e mesmo distante do mundo, ainda me atrai, envolvendo-se numa presença
estranha ao presente do tempo e à presença no espaço. a possibilidade da
fascinação me brinda, no seu exato instante de seu acontecimento, com uma
cisão: da possibilidade de ver aquilo que me fascinou, tal objeto do fascínio
transmuta-se em impossibilidade, no próprio seio do meu próprio olhar, ainda
arrebatado. assim, o meu olhar encontra naquilo que fez nascer o meu fascínio
alguma força, um poder, que o neutraliza, que não o suspende nem o detém mas,
pelo contrário, que o impede de jamais terminar o ver, que o impede de jamais
terminar de olhar; corta o olhar de todo e qualquer começo e faz dele um clarão
neutro extraviado que não se extingue nunca mais. eis aqui a essência da minha
solidão. o fascínio é o olhar da minha solidão, o olhar do incessante e do
interminável, em que a minha persistência, a minha cegueira, ainda é visão;
visão que já não é possibilidade de ver mas justamente impossibilidade de não
ver, a impossibilidade que se faz ver, que persevera – sempre e sempre – numa
visão que não finda: num olhar morto, olhar convertido no fantasma de uma visão
eterna.
aqui estou eu, olhando.
é sobre o olhar essa coisa toda. o olhar da consciência.
é sobre um olhar que num dado instante viu alguma coisa que nunca mais pode
desver. coisa esta que ficou tingida com tinta invisível em retina fina, porém
persistente. eu preciso falar desse desejo que não quebra, desejo de mudança
que mesmo sem saber como, se fará ação e se efetivará no seio do mundo; mudança
tornada possível.
minha performance acontecerá no palco do teatro glaucio
gill, em copacabana, integrando a ocupação que o teatro inominável fará em
comemoração aos seus cinco anos de trabalho. a performance acontecerá no dia 24
de outubro, quinta-feira, de 17h às 18h. a entrada será franca. e o público
entrará na sala de espetáculos a partir de 16h45 para que, pontualmente às 17h,
tenha início a performance.
quando vocês entrarem na sala de espetáculos, vão se
acomodar na platéia. eu estarei na cabine, aguardando que todos se acomodem
para apagar todas as luzes. quando tudo se apagar, ninguém mais entra na sala.
eu acenderei um refletor para revelar um pedaço de uma coluna de vergalhões,
posicionada sobre o chão de madeira do palco; em seguida, acenderei outro
refletor para revelar quatro pedaços de vergalhões soltos, posicionados sobre o
chão de madeira do palco; em seguida, acenderei outro refletor para revelar um
violino e suas quatro cordas, posicionado sobre o chão de madeira do palco. eu
descerei as escadas e chegarei até o palco.
eu trarei ao palco uma violinista convidada a me
acompanhar nesta experiência. ela estará sentada na primeira fileira, tendo em
mãos um caderno e um arco, para tocar seu violino. a violinista buscará – sem
combinações ou ensaios prévios – a vibração do fascínio nervoso que se enraizou
no meu olhar no dia em que passei pelo maracanã.
lado a lado, posicionados sobre o palco de madeira, eu e
a violinista falaremos simultaneamente, porém cada qual com sua língua. eu com
palavras, ela com fricções agudas, brilhantes e estridentes, eventualmente
aveludadas. falaremos juntos. fala sobre fala. ela acompanhando o meu nervoso e
eu nos nervos dela buscando abrigo; estrada.
falarei usando palavras. tal como agora eu estarei lendo.
lendo sobre o que eu sei sem saber. sobre o que eu tenho sem ainda ter. sobre o
amor que tenho por todas as existências deste mundo que dia após dias são mais
e mais violadas. eu tenho um caderno em branco, dentro da primeira gaveta da
minha mesa de cabeceira. ele está ali no quarto e será, pela primeira e única
vez, inteiramente usado. neste caderno, que a violinista estará segurando e que
me entregará quando vier ao palco, eu vou dar voz ao meu olhar.
minha ação tem por nome ementa. do dicionário priberam da
língua portuguesa:
e·men·ta
(derivação regressiva de ementar)
substantivo feminino
1. breve apontamento para lembrança.
2. sumário, resumo.
3. lista; rol.
4. comemoração por defunto.
5. lista de pratos de uma refeição.
no caderno, escreverei todas as páginas dividindo a
escrita em cinco capítulos criados a partir das cinco acepções da palavra
ementa. eu vou terminar essa minha leitura-fala, vou me dirigir ao quarto,
pegar o caderno e pedir que cada um, escolhendo uma aleatória página,
escreva-me uma palavra. e então minha performance terá começado. tenho treze
dias para escrever aquilo que lerei ininterruptamente sobre o palco.
eis o planejamento dos cinco capítulos a partir das cinco
acepções já apresentadas:
1. breve apontamento para lembrança.
sobre aquilo que não pode mais continuar esquecido: a
educação. sobre esta professora.
2. sumário, resumo.
com
as etapas de uma consciência que se descobre em crise e que racha, clamando por
transformação. sobre a crise de consciência desta professora.
3. lista; rol.
com possíveis respostas à realidade,
possíveis ações para tentar negociar com a cegueira e indiferença que assola o
presente momento. sobre as possibilidades de diálogo com a realidade do rio de
janeiro dos dias atuais.
4. comemoração por defunto.
por se reconhecer já vencido, violado e
sucateado, faz-se então desta pobreza a arma capaz de atravessar o capital
instaurado. cheirar o cabelo da morte impulsiona a vida.
5. lista de pratos de uma refeição.
dos
ingredientes necessários para efetivar a potência viva em cada uma dessas
manifestações. o amor nascido do encontro de algumas diferenças. o concreto
armado que sustenta arquibancadas e prédios apenas porque agrega em si
ingredientes muito distintos.
e então
minha ação acaba. minha ação não estará nas ruas, mas dentro de um teatro.
minha ação não desdobra os temas da copa do mundo, mas sim a planície oprimida
sobre a qual se constroem tantos estádios. minha ação não é uma performance, mas
uma performance escondida dentro de um curto espetáculo. eu ainda não sei o que
fazer com este projeto, por isso sigo muito confiante nessa perdição: ela
esconde algum abismo escuro e dourado. o que posso oferecer são minhas
vísceras. aqui dentro eu tenho uma ópera, uma tragédia, um super herói, uma
copa do mundo, um épico, uma performance, uma cidade, um corpo, um violino, uma
arquitetura, uma arena, uma ficção, uma história, uma educação, uma revolução,
um social, um terrorismo, um romance, amor. aqui dentro eu tenho amor e, pela
primeira vez em mim, tenho uma pulsão desmedida por aquilo que eu ainda não sei
nomear, mas que me acaricia o corpo e a alma, insistentemente. o que tenho quer
chegar até vocês.
por
isso, fechem os olhos, por favor. e se coloquem no lugar dela.
porque
hoje ela está cansada como nunca esteve até agora. suas olheiras viraram a cor
da pele que lhe cobre o rosto carcomido por tanta interrogação. ela está de pé.
sentada. ela está de pé. e, de novo, está sentada. ela diz sem proferir palavra
que é paga para educar. ela sabe disso. ela reconhece ser paga para educar. mas
na beira dos seus lábios, escorrega a suposição de que essa educação tal qual a
pagam para ensinar, essa educação virou mentira faz tempo. na beira de seus
lábios entreabertos, a certeza da mentira dessa educação sucateada lhe planta
uma granada sem pino. então ela fecha os olhos e se deixa morrer: por ter-se
descoberto alguém comprada para ensinar aquilo que nunca acreditou. ela abre os
olhos. e vocês também, por favor.
um
silogismo é um termo filosófico com o qual aristóteles designou a argumentação
lógica perfeita. um silogismo é constituído por três proposições declarativas
que se conectam de tal modo que a partir das duas primeiras,
chamadas premissas, é possível deduzir uma conclusão. exemplo: eu sou paga
para educar; educar é uma mentira; eu sou paga para mentir.
giz. luz de giz. som de giz. ar sufocado de giz.
não há nada mais sujo, mais injusto, mais escroto do que
encher a barriga à custa da burrice do outro. as minhas mãos! nada mais
doloroso do que ver a cegueira alheia e sentir pena de si próprio por ainda se
achar lúcido. sujeira. nas minhas mãos! até agora eu não conhecia nada tão
obscuro, maldoso, tão perdidamente escroto. nada tão tremendamente horrível, eu
não conhecia nada tão sem palavras para dar conta dessa escuridão desse abismo
desse monstro que nasce e cresce e só come e só vira mais monstro, mais rombo
mais brusco mais risco quina sangue e abuso. mais usura. mais acne. mais suor e
sono. mais tv e panetone. mais medo. mais nojo. as minhas mãos! eles sabem que
eu sei! eles sabem que podem seguir se usando da burrice alheia. e da minha! e
sabem que eu sei que a burrice só cresce. e que, no entanto, eu sou paga para
diminuir isso que eles alimentam mais e mais a cada dia.
asfixia.
a burrice é a cama onde eles deitam os pés sujos todos os
dias. quanto mais, melhor. quanto mais burro, melhor. melhor. quanto mais burro
for seu povo, mais nobre será a sua falsa preocupação em cuidar do futuro. que
não virá. que não veio. e, no entanto, nos tapeiam. fazendo de mim alguém
contratada para atingir o impossível. querendo que eu crie em sala de aula
seres capazes de lidar com o cinismo.
febre. e delírio.
e se eu fizer um exército? e se eu formar assassinos? ao
invés de crianças? ao invés de alunos? serei presa ou serei justa? serei errada
ou brilhante? eu sigo suja, sabendo da nojeira e ensinando estrelas. confiando
na poesia quando vejo nas esquinas, as minhas crianças perdendo seus narizes e
cabeças! eu tentando dar conta daquilo que já me disseram que não vai ser
possível! como pôde, meu deus?! como eu pude um dia ter me servido a isso?
quando foi? que eu abri os olhos nessa envergadura que já não posso mais
fechar? como eu pude ver meus sonhos – tão sinceros – virarem mentiras? as
minhas mãos! tremem tentadas à truculência. eu quero premer. quero apertar e
romper. quero, se possível, hoje, fazer pacto com o demônio para que ele me
impulsione ao extermínio daqueles que querem me exterminar com dentição pintada
em doçura fingida.
eu vou buscar o caderno e uma caneta. e, em silêncio,
peço que cada um – aleautorizando uma página do caderno – escreva nela uma
palavra. uma palavra que tenha ficado presa na ponta de seus olhos.
diogo liberano