UMA ANTROPOLOGIA DO ESPAÇO
Resenha de CHOAY, Françoise. Pour une
anthropologie de l’espace. Paris: Seuil, 2006.
Amilcar Torrão Filho
Pontifícia Universidade
Catótolica de São Paulo
Françoise Choay é bem conhecida do público
brasileiro, por vários de seus livros e artigos já traduzidos para o português,
como A regra e o modelo, ou a Alegoria do Patrimônio. Este livro,
recém-publicado na França, não é exatamente uma obra nova, mas a coletânea de
trabalhos esparsos e de difícil acesso, coligidos para a coleção La Couleur des Idées, da editora Seuil.
Embora escritos ou publicados entre 1985 e 2005, seus textos apresentam uma
incômoda atualidade.
A própria autora, em seu prefácio, chama a
atenção para a heterogeneidade dos temas tratados, mas adverte, o que a leitura
confirma, que seus textos possuem uma “dupla unidade de objeto e de tempo” (p.
7). Uma unidade de temas, pois para ela edifícios singulares e arquitetura,
cidades e urbanismo, monumentos e conservação patrimonial, projetos icônicos e
projeto político, são formas e práticas múltiplas de uma mesma e única
atividade, “cujo desdobramento no espaço natural permite às sociedades humanas
edificar o seu meio próprio” (pp. 7-8). E uma unidade temporal, não
necessariamente de suas balizas cronológicas, que vão do século XV de Alberti
ao século XXI do patrimônio mundial, mas do período no qual estão inseridos os
textos escolhidos, que a autora afirma estar marcado por uma revolução
eletro-telemática, ou informacional, de enorme impacto sobre a cidade, o urbanismo
e o patrimônio.
O livro está dividido em quatro partes:
História e Crítica, O Urbano, Patrimônio e Antropologia; ainda que sejamos
advertidos que esta classificação é em parte arbitrária, e estes temas se
entrecruzem constantemente. Justamente a antropologia, que dá título ao volume,
dá uma unidade conceitual a estes textos aparentemente heterogêneos. A autora
insiste nesta “função antropo-genética da espacialização” que, segundo ela,
está totalmente ausente do debate sobre a arquitetura e o urbanismo, mesmo nos
órgãos de administração ou na “praça pública”, unânimes em “celebrar o caráter
lúdico e mediático de todas as ‘artes do espaço’, devotados “ao deus da moda e
das finanças” (p. 10). Ou seja, Choay procura destacar o caráter não-natural da
arquitetura e da produção de cidades, nos quais a política e a ação do homem
são constitutivas, muito mais do que uma técnica pretensamente científica e
neutra.
Sua primeira crítica é endereçada, então, a
Le Corbusier, num texto que o coloca em perspectiva. Seu interesse não é tanto
a obra de Le Corbusier, como um determinado aporte moderno sobre a arquitetura
e a cidade, representada pelo arquiteto suíço. Tampouco são as carências
técnicas de suas obras construídas, embora não deixe de apontá-las; mas
demonstrar o que denomina “a dimensão retórica do funcionalismo corbusiano” (p.
16). Justamente porque esta dimensão retórica é o aspecto mais importante da
obra do arquiteto, responsável pelo que Choay considera a sua incompreensão da
condição antropológica da urbanização; ou mais claramente, a ausência de uma
dimensão verdadeiramente urbana de seus projetos de metrópoles (p. 21). A
dimensão polemista de seus textos, mais abundantes que sua obra construída, e
sua recepção altamente midiática, seriam responsáveis pelo alcance de seu
trabalho no pensamento urbanístico, a despeito de sua incompreensão da real
dimensão da técnica na cidade, ao contrário dos esquecidos Ildefonso Cerdà, que
Choay não se cansa de recuperar, e Gustavo Giovannoni, ou de Camillo Sitte,
acusado pelo mesmo Jeanneret de passadista.
Apoiado numa ideologia progressista, Le
Corbusier presume, assim, a universalidade das necessidades do homem, por isso
a possibilidade de se construir as suas famosas “máquinas de morar” e “máquinas
de habitar”; mais do que isso, “trata-se de conceber, para o homem universal,
protótipos reprodutíveis de cidades e não mais apenas edifícios isolados” (p.
25). Trata-se de uma modernidade universalizante e “desumana”, destinada a um
“homem teórico”, portanto inexistente (p. 36). Mas o arquiteto suíço não é o
único representante desta ideologia progressista, composta de “imperativos
categóricos, de paralogismos, de amálgamas terminológicos, de referências a
saberes não dominados, de metáforas falaciosas”, cujos autores se instauram
como “detentores e enunciadores da verdade arquitetônica e urbanística”; dos
quais o mais talentoso, e midiático, é hoje Rem Koolhas (p. 115).
Falta-nos, para Choay, um discurso crítico
e autocrítico, ou um “discurso epistemológico” sobre a cidade e a arquitetura,
que ela encontra, por exemplo, em Alberti, daí a unidade de objeto de seu texto
apesar da enorme distância temporal. Por isso a sua insistência no caráter não
prescritivo do De Re Aedificatoria,
cuja finalidade não é descrever os meios que permitam “realizar uma série de
projetos concretos, nem de propor uma coleção de edifícios ideal-típicos, mas
de fazer compreender a significação do ato construtivo” (p. 379). Tanto em Le
Corbusier como em Alberti, a autora insiste em seu caráter retórico, que não
significa obviamente apenas “discurso”, numa acepção de senso comum, mas de uma
preceptiva do ato de construir, uma teoria da arquitetura e do urbanismo (p.
379). A diferença é que Alberti reconhece a dimensão antropológica da
construção de cidades e da vida urbana.
Apesar de acusada, como Sitte e
Giovannonni, de passadista, por sua defesa da cidade já construída e do
patrimônio arquitetônico, que ela toma o cuidado de distinguir do patrimônio
histórico, mais ligado aos “abusos de uma indústria mundializada e
mundializante do patrimônio” (p. 319), e que não tem, necessariamente, um
“estatuto antropológico” (p. 266), Choay chama a atenção para o que considera
um grande anacronismo atual: denominar os espaços urbanos nos quais habitamos
hoje pelo conceito arcaico de “cidade” (“Ville”:
un archaïsme lexical, pp. 148-153). Deveríamos, assim, admitir o
desaparecimento da cidade tradicional e interrogar-nos sobre “a natureza da
urbanização e sobre a não-cidade que parece ter se tornado o destino das
sociedades ocidentais avançadas” (p. 167); o que denomina, baseada em Melvin
Webber, de era pós-urbana, título de
um dos artigos citados deste autor (p. 200).
Para não deixar dúvidas quanto ao caráter
não-passadista de sua obra, chega a sugerir até mesmo algumas demolições vistas
como necessárias: da Biblioteca Nacional (ou ironicamente a Très Grand Bibliothèque), por seu
“programa anacrônico, concepção anti-funcional, implantação absurda, e custo de
funcionamento insano”, a Ópera da Bastilha e o Ministério das Finanças, por sua
“desestruturação sem apelo do tecido circundante” e inutilidade (p. 304). Claro
que, assim como Alberti, seu texto não é prescritivo, nem um manual de
construção de cidades. Suas sugestões polêmicas e impossíveis, nestes casos
citados, são muito mais um destaque sobre a forma como determinadas
intervenções urbanas não levam em conta um conhecimento antropológico da cidade
e do patrimônio e uma profunda incompreensão da significação do ato
construtivo, que ela identifica na obra de Alberti. Um debate premente para o
qual, infelizmente, possui poucos interlocutores.
Recebido em 12/09/2007.