Os
sul-africanos acreditaram nas promessas de mais emprego, turistas e
investimentos bilionários que viriam com a Copa. Mas, segundo Eddie Cottle,
autor do livro Copa do Mundo da África do Sul: um legado para quem?, nada disso
se materializou. Estariam os brasileiros caindo na mesma armadilha?
por Alexandre Praça
É só mencionar a palavra Fifa, que o sangue sobe à
cabeça de Eddie Cottle. Sul-africano apaixonado pelo continente onde nasceu,
ele estudou a fundo as promessas e o verdadeiro legado da Copa de 2010. “A Fifa
e seus parceiros conseguiram os maiores lucros de sua história na África sem
pagar um tostão de impostos”, esbraveja.
Eddie fala sobre o assunto com conhecimento de causa.
Ele foi o coordenador da campanha por trabalho decente entre os sindicatos da
construção no país – catalisador da greve de 70 mil trabalhadores em todos os
estádios da Copa em 2009. Quatro anos de militância e estudos renderam o livro South
Africa’s World Cup: A Legacy For Whom?(Copa do Mundo da África do Sul: um
legado para quem?), lançado este ano e sem data para ser publicado no Brasil.
Encontrei Eddie em um seminário com operários do setor
em Kharkov, Ucrânia, uma das cidades-sede da Eurocopa 2012. Falamos sobre
acumulação de capital, o medo das obras atrasadas, as promessas de
infraestrutura e o que espera o Brasil depois que o carnaval do futebol passar.
LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL– Começo com a pergunta do
livro: a Copa do Mundo da África do Sul foi um legado para quem?
EDDIE COTTLE – Diziam que haveria um legado porque
seria a primeira Copa do Mundo a ser realizada na África. Falavam que os ganhos
seriam muito maiores que os investimentos públicos gastos para sediá-la. Também
se dizia que, ao mostrar a África do Sul por meio da mídia mundial, o país
receberia investimentos.
Houve ainda uma ideia de que, com o destaque de nossas
belas paisagens, haveria uma explosão do turismo. Para os trabalhadores em
geral e para o público, havia uma expectativa de que a Copa iria gerar emprego.
Comentavam que haveria dinheiro fluindo para dentro do país por meio do
turismo, dos investimentos, e assim por diante.
Mas a realidade é que a Copa não forneceu tudo o que a
mídia prometia, nem em relação aos compromissos do documento de candidatura. O
que vemos é que as copas do mundo são veículos para a acumulação de capital
privado em uma escala global, em que a Fifa atua como facilitadora. Em termos
de acumulação de capital, não há nada igual, nem mesmo nos velhos tempos do
imperialismo ou na globalização moderna. A Copa recebe toda essa atenção
precisamente porque os ultrapoderosos são aqueles que mais se beneficiam dela.
Para isso, eles fabricam mentiras descaradas para o
público. Dizem que haverá grandes investimentos, que o país vai se beneficiar
do turismo, que haverá emprego e [que o evento] trará toda essa glória para o
país. Pelo menos o último ponto é verdadeiro. O país é deixado com a glória de
sediar a Copa, mas a um custo significativo para a sociedade e os pobres em
geral.
DIPLOMATIQUE– Então a Copa não deixa um legado?
EDDIE COTTLE – Se você quiser falar sobre o legado, eu
diria o seguinte. Embora a Copa da África tenha sido um momento histórico, foi
também ali que a Fifa e seus parceiros conseguiram obter os maiores lucros de
sua história. Isso é simbólico porque representa uma relação neocolonial com o
continente africano. As corporações multinacionais e essas grandes organizações
sempre acham que podem fazer mais dinheiro com a África e com o chamado
terceiro mundo.
Nesse sentido, houve um legado negativo. A Fifa e seus
parceiros tiveram grandes lucros garantidos sem ter de pagar impostos para o
país. Isso significou também que os sul-africanos precisaram oferecer muita
coisa. Tivemos de garantir ruas “limpas” de pobreza. Tivemos de fazer novas
leis para policiar efetivamente as profissionais do sexo. Significou que não
poderia haver projetos de construção durante todo o mês da Copa, ou seja,
perdemos uma contribuição para o PIB. Isso nunca é mencionado.
Há também a questão dos gastos deslocados. Se você
analisar o fato de que houve uma despesa de 40 bilhões de rands [R$ 9 bilhões]
e olhar para os dados de consumo do evento, verá que isso envolve o turismo dos
próprios sul-africanos. Mais de 60% da renda do evento saiu do bolso dos
locais. Então, onde está a evidência de que todo esse turismo iria trazer
dinheiro para o país? Que os turistas iriam fornecer a maior parte da renda?
DIPLOMATIQUE – Explique isso melhor, por favor.
EDDIE COTTLE – Quando eu digo locais, quero dizer
gastos dos habitantes do país com ingressos, alojamento em hotéis, transporte,
compra de parafernálias como camisetas e lembrancinhas. A maior parte desses
gastos foi feita pelos próprios sul-africanos. Isso basicamente quer dizer que
o que realmente existe durante a Copa do Mundo é um deslocamento de consumo.
Dessa maneira, na verdade, nós perdemos dinheiro,
porque grande parte desses recursos foi parar no bolso dos capitalistas
mercantis da Fifa. Analisando um dos parceiros da Fifa, a Budweiser, você tem
de consumir só o produto deles no estádio. Há também o cartão de crédito
oficial, da Visa, e todas essas coisas. Por conta disso, há uma dívida
crescente no âmbito nacional e internacional.
Esse nível de acumulação não é devidamente pesquisado.
A maioria das análises se concentra na Fifa e seus parceiros comerciais, mas
não no tipo de modelo que produz essa magnitude de acumulação. Por exemplo,
quanta riqueza realmente deixa o país anfitrião por meio do envio de técnicos
qualificados por parte dos parceiros comerciais? Quero dizer, os engenheiros de
alto nível, mas também me refiro aos lucros. Existem os parceiros da Fifa na
construção civil e firmas de arquitetos internacionais. Portanto, uma grande
quantidade de dinheiro deixa o país por meio do envio de lucros ao exterior.
Nós importamos materiais, e isso não é descontado na
conta final. Por exemplo, nos dois estádios mais espetaculares, o Soccer City e
o da Cidade do Cabo, toda a cobertura foi importada. Acho que no Brasil o nível
de gasto nesse tipo de coisa poderá ser ainda mais bizarro. Por isso é
importante seguir o rastro do dinheiro. O que exatamente está sendo importado e
o que está sendo feito por quem e onde. Não se podem determinar os custos e benefícios
reais a menos que você faça esse tipo de análise. Tivemos milhões e milhões de
fundos locais sendo canalizados ao exterior. Significa, portanto, que o
dinheiro que deveria estar circulando na economia nacional não circulou.
DIPLOMATIQUE– No Brasil, toda a mídia está vendendo a
ideia de que as arenas não estarão prontas a tempo para a Copa, e isso criará
um constrangimento para o país. Essa é basicamente a preocupação de todos. Eu
me pergunto se o mesmo tipo de pressão ocorreu na África do Sul.
EDDIE COTTLE – Bem, certamente isso ocorreu em duas
ocasiões. A Fifa tentou apontar erros e para isso usou a pressão do prazo de
conclusão dos estádios. Era um blefe para que eles impusessem seu sistema.
Grande parte dos atrasos foi causada por mudanças no projeto arquitetônico. Era
a Fifa querendo algo novo.
Por outro lado, isso nunca foi uma questão relacionada
ao nível de produtividade. Os trabalhadores são sempre produtivos e de maneira
até exagerada, porque esse evento mexia com o orgulho nacional. Apesar disso,
os sindicatos compreenderam que os direitos do trabalho são direitos humanos
fundamentais que não poderiam ser comprometidos nem mesmo em eventos dessa
natureza. Isso nos ajudou muito a garantir os direitos dos trabalhadores em
termos de salários e benefícios.
É um absurdo dizer que os estádios não poderão ser
concluídos a tempo. Na África do Sul, algumas das arenas foram concluídas
quatro meses antes do previsto. Todo o escarcéu da Fifa sobre a conclusão da
infraestrutura na verdade é uma forma de pressionar os empreiteiros. Dessa
maneira, a Fifa consegue garantir as mudanças que eles querem e quando querem.
DIPLOMATIQUE– E a mídia faz parte dessa jogada?
EDDIE COTTLE – Na realidade, quando estávamos tendo
nossas greves, toda a mídia negativa veio de jornais internacionais. Colocavam
manchetes como “A Copa do Mundo está em risco na África do Sul”. Nada disso era
verdade. Eu sei disso porque estava meticulosamente acompanhando o andamento
das obras junto com os municípios.
A grande questão é como todos esses diferentes
capitais se acumulam. O Estado subsidia o evento, e os capitais nacionais e
internacionais compartem o bolsão de fundos. O que você tem então é um processo
global no qual a grande mídia imediatamente articula a posição negativa para
atropelar os trabalhadores. Dependerá dos sindicatos, partidos políticos e
outros grupos sociais formular uma resposta à forma como essas coisas são
articuladas.
DIPLOMATIQUE– Em termos de legado positivo, o governo
está dizendo que esta é a oportunidade de realizar os investimentos na
infraestrutura de que o Brasil sempre precisou. Essas promessas foram cumpridas
na África do Sul?
EDDIE COTTLE –É sempre importante separar o que é
investimento para a Copa e o que é infraestrutura. O que se está fazendo é
confundir as duas coisas. Sempre existem planos para infraestrutura, sejam eles
de estradas, aeroportos ou outros tipos de sistema de transporte, que,
naturalmente, são necessários para a economia. O que aconteceu na África foi
que quase todas as iniciativas se voltavam para a Copa. Na verdade, o que é
feito é adiantar os investimentos em infraestrutura.
Há consequências sobre o dinheiro gasto naquilo que
não é de interesse nacional. Por exemplo, nós gastamos dinheiro em estádios que
se tornaram elefantes brancos. Cerca de 4,5 bilhões de rands [R$ 1 bilhão]
foram gastos no Green Point, na Cidade do Cabo, mas não precisávamos daquele
estádio. Foi um desperdício de infraestrutura.
Eu acho que se pode dizer sim à infraestrutura, mas
ficar de olho em como se gasta esse dinheiro e para qual finalidade. Porque
isso compõe o espetáculo da Copa do Mundo. É uma espécie de grande carnaval, e
tudo é justificável para realizá-lo. Então, você precisa colocar no estádio
todas essas luzes, cores e roupagens para que ele não se pareça aos da
Alemanha. Tivemos uma competição interminável sobre qual cidade tinha o estádio
mais extravagante e luxuoso, sem consideração às necessidades sociais.
DIPLOMATIQUE– Que consequências esse desperdício
trouxe para o país?
EDDIE COTTLE – Neste momento, a África do Sul e os
países vizinhos estão perdendo mais investimentos locais do que recebendo
investimento estrangeiro direto. Isso porque a Copa do Mundo não traz
investimento estrangeiro direto. O que se cria é um subsídio para pessoas
visitarem o país. Mas não se investe realmente. Há também o problema do turismo
neste período de contração econômica, com desemprego e salários diminuindo.
Assim, não se concretizou o número de turistas previstos durante nem depois da
Copa.
Outro ponto: é justificável aplicar esse volume de
recursos com base em uma suposição? Porque é suposição, não ciência. Você não
está dizendo: “Se eu gastar 1 bilhão, garanto que nos próximos dez anos vamos
ter 200 milhões de turistas” e, portanto, seria possível calcular a quantidade
de dinheiro que vamos ganhar. Isso não é possível. É pura economia da
suposição.
Eu diria que não vale a pena gastar todo esse
dinheiro. É realmente parte da construção da marca da Fifa e de seus parceiros.
É parte do plano de criação de um espetáculo para exportação e, dessa forma,
você chama o interesse do público e a atenção para a Copa do Mundo.
Essencialmente, o Estado precisa justificar essa quantidade enorme de gastos.
DIPLOMATIQUE– No caso específico dos estádios, quais
são os problemas financeiros causados por essa carga de investimentos?
EDDIE COTTLE – Vão dizer que agora o país possui a
infraestrutura necessária e que não haverá problemas para manter todos os
estádios. Mas não dirão que daqui a quinze anos será necessário substituir o
teto do estádio, e isso terá um custo enorme. Porque aí terão de pedir que o
fabricante da Alemanha reinvista naquele estádio.
Em segundo lugar, haverá mais concorrência por parte
dos proprietários do estádio para receber os subsídios dos municípios. Por
exemplo, eu sei que no Brasil o Estado subsidia 60% dos investimentos. Isso
quer dizer que o governo é uma das partes mais interessadas. Por isso, tem o
dever de garantir a sustentabilidade do investimento, senão haverá uma comoção
pública. Significa também que o Estado tem de tirar dinheiro de investimentos
sociais.
Em terceiro, há o desenvolvimento desigual e
desarticulado. Isso acontece, por exemplo, com outras instalações esportivas
menores. O novo investimento obriga que todos os jogos sejam realizados no novo
estádio. É o que está ocorrendo na África do Sul agora. Existiam alguns estádios
menores muito bons que agora não estão sendo usados porque é preciso usar a
nova arena. Eu prevejo claramente que o Brasil terá problemas financeiros
particularmente com os estádios, e isso irá gerar preocupações no futuro
próximo.
DIPLOMATIQUE– Se você pudesse dar um conselho aos
sindicatos no Brasil sobre o que deu errado na África do Sul e você faria
diferente, qual seria?
EDDIE COTTLE – O primeiro problema foi que os
sindicatos não entenderam as implicações econômicas do evento. Eles também
caíram nas promessas da Copa do Mundo e o que ela iria trazer para os
trabalhadores. Isso acabou definindo o papel dos sindicatos e suas demandas em
relação ao evento. Nós começamos nesse processo sem entender direito a
articulação do dinheiro, como ele iria circular e beneficiar a nação. Os únicos
dados eram aqueles produzidos pelos entusiastas da Copa e pelos institutos
econômicos e suas mentiras descaradas.
Em segundo lugar, no que diz respeito às greves, como
foram transmitidas internacionalmente. Toda greve é colocada em nível
internacional. E isso é uma grande oportunidade. Nós tivemos muita atenção da
mídia internacional, foi inacreditável. A maneira de entender esse evento irá
moldar como se podem relacionar as realidades sociais dos trabalhadores com
essas percepções que a mídia nacional e internacional irão gerar em relação ao
público. Você tem de agarrar a mídia pelos chifres.
Alexandre Praça
Jornalista
\\
Publicado na revista Le Monde Diplomatique Brasil em
01 de novembro de 2011.