por Luís Brasilino
DIPLOMATIQUE – No estudo “Cidades de exceção:
reflexões a partir do Rio de Janeiro”, o senhor afirma que os megaeventos
realizam de maneira plena e intensa a cidade de exceção. O que isso significa
na prática?
CARLOS VAINER – São processos resultantes de uma
maneira de pensar a cidade que se fortaleceu com a ofensiva neoliberal. Esta
pensa a intervenção do Estado na economia e na vida social como essencialmente
perversa, já que o mercado seria a forma mais adequada de alocar recursos da
sociedade. Na cidade, isso se materializa em uma crítica feroz a todas as
formas de organização que caracterizaram o planejamento urbano desde o fim da
Segunda Guerra Mundial e que tinham como elemento principal um plano de
ocupação do solo que leva em conta a cidade como um todo, buscando racionalizar
o crescimento e a evolução da cidade e organizar a ocupação do espaço. Esse
planejamento centralizado, muitas vezes tecnocrático e autoritário, foi objeto
de duas críticas. A primeira, de movimentos populares, reivindica descentralização,
com participação expressiva da sociedade civil no planejamento da cidade. A
outra crítica identifica a intervenção do Estado como um obstáculo ao livre
desenvolvimento urbano. Assim, o planejamento centralista, tecnocrático e
autoritário que existia durante a ditadura militar recebe, nos anos 1980 e
1990, um ataque pela esquerda e outro pela direita. E, apesar da Constituição
de 1988 estabelecer que todas as cidades com mais de 20 mil habitantes devem
ter um plano diretor, ao longo da década seguinte a correlação de forças vai
caminhar em direção ao projeto neoliberal. Este vai atacar de maneira brutal
todas as formas de regulamentação. Mesmo com a aprovação do Estatuto das
Cidades, o que avança é a concepção da cidade pensada como empresa, que compete
com outras “empresas” em um mercado mundial de cidades para atrair capitais,
investimentos, turistas. Isso promove uma guerra aberta de cidades contra
cidades, cada uma oferecendo vantagens mais absurdas que a outra para atrair
capitais.
Se a cidade é pensada no modelo de empresa, ela deve
ser dirigida como tal, não pode ficar submetida a regras rígidas, tem de ser
flexível e capaz de aproveitar as janelas de oportunidade que o mercado mundial
oferece. Na legislação brasileira, essa flexibilização toma a forma da
“operação urbana”, que autoriza o governo local a desrespeitar as leis sempre
que houver uma negociação caso a caso. Isso passa a dominar o planejamento de
algumas cidades, excluindo a ideia de um planejamento compreensivo, ainda mais
o planejamento democrático-participativo. Em uma empresa, não dá para fazer
democracia, tem de fazer negócio. E como o negócio é feito? Caso a caso. Com as
parcerias público-privadas, uma negociação caso a caso entre poder local e as
empresas privadas, a cidade inteira torna-se objeto de negociação, como
acontece no Rio de Janeiro. Essa cidade em que a negociação ad hoc impõe-se
sobre a regra geral é uma cidade cada vez mais regida pela exceção.
DIPLOMATIQUE – E como a Copa do Mundo atua nesse
contexto?
CARLOS VAINER– O megaevento agudiza e aprofunda essa
ideia de cidade de exceção: as regras todas vão para o espaço. A legislação de
exceção produzida para acolher esses eventos é o exemplo mais puro do que estou
falando. Por exemplo, todas as empresas associadas ao COI e à Fifa não pagam
impostos. A lei de responsabilidade fiscal, que estabelece um limite de
endividamento, é flexibilizada para obras associadas a megaeventos. Por que um
município pode se endividar para fazer um estádio e não pode para fazer saneamento
básico? A Fifa agora quer proibir a comercialização de qualquer produto que não
seja de seus associados em um raio de 2 quilômetros dos eventos e das áreas de
interesse dos jogos. E também viola direitos humanos consagrados em nossa
Constituição, como o direito à moradia. Em nome desses projetos, atualmente se
procede a uma limpeza social e étnica, expulsando populações; 170 mil pessoas
serão removidas em nosso país.
DIPLOMATIQUE – Essa cidade de exceção tem um corte de
classe, ou seja, quem perde e quem ganha com esse modelo?
CARLOS VAINER– A cidade de exceção é uma face da
moeda. A outra é o que chamo de democracia direta do capital, com a cidade
segmentada em projetos singulares, cada um deles sendo objeto de uma negociação
particular, que denominam publicamente de parceria público-privada. A área
portuária do Rio de Janeiro é um caso insuperável. Nela, 5 milhões de metros
quadrados, praticamente no centro do Rio, foram entregues a uma operação
urbana; um consórcio empresarial, que evidentemente não foi eleito para isso,
que vai ter poder de governo sobre uma parte vital da cidade. E com
financiamento público. É um deslocamento brutal de recursos públicos não apenas
financeiros, mas fundiários, de potencial construtivo, paisagístico. Em
Curitiba, o Atlético Paranaense vai construir o estádio da Copa, só que a
prefeitura ampliou o índice de ocupação nessa área, de maneira que, em
potencial construtivo, transferiu para o clube o equivalente ao que ele vai
gastar no estádio. Alguns projetos só podem ser explicados por uma vontade
antipopular profunda. A Vila Autódromo no Rio de Janeiro está sendo deslocada
apenas porque o pobre é considerado um vizinho indesejável; não há nenhum
projeto que ocupe aquela área. Em Pequim, essa limpeza social teve efeitos dramáticos:
mais de 1 milhão de pessoas foram deslocadas. Na África do Sul, foram
realizadas operações nas áreas próximas aos estádios para impedir que os pobres
“poluíssem” o caminho.
Voltando ao termo, não é que vai se seguir a
legislação vigente sobre a ocupação e o uso dos espaços públicos. Não. É feita
uma legislação de exceção. A Lei Geral da Copa estabelece uma pena específica
para o uso indevido do logo da Fifa. Se você usa indevidamente uma marca
comercial, você estava passível de sofrer as penalidades da lei. Mas aqui não;
existe uma tipificação criminal de exceção. Foi criada uma secretaria especial
de segurança dos grandes eventos no âmbito do Ministério da Justiça. Estamos
criando novos órgãos no Estado. Tribunais especiais de exceção.
A soberania de espaços públicos é entregue a uma
entidade privada estrangeira. Quer dizer, quem determina quem entra em espaços
públicos e quanto se paga vão ser eles. Sabemos que querem eliminar o direito à
meia-entrada. No Pan do Rio em 2007, um contrato com uma empresa de fast food
proibia a entrada de qualquer alimento nos estádios. O sanduíche da sua
namorada ou da sua avó não poderia adentrar no Engenhão porque você estava
obrigado a comer o “saudável” hambúrguer da tal rede. Para ver se não portavam
comida, as pessoas eram revistadas na entrada do estádio. Não podia entrar com
água. Veja bem, regime de exceção é um termo delicado para isso.
DIPLOMATIQUE – E os estádios, o senhor acredita que
eles poderão levar desenvolvimento ao menos para as regiões onde serão instalados?
CARLOS VAINER– Falemos de experiências concretas. Em
Pequim, os grandes equipamentos estão vazios. Na África do Sul, já discutem a
demolição de alguns estádios. O Parque Aquático Maria Lenck, feito para o Pan,
não serve para as Olimpíadas. Em Brasília, eles pretendiam fazer um estádio de
70 mil lugares para poder competir com São Paulo pela abertura – agora sabemos
que São Paulo foi escolhida, mas, de qualquer maneira, um estádio da Copa tem
de ter 40 mil lugares. Vocêsabe qual é o público médio de Brasília? Duas a três
mil pessoas. Em São Paulo, o Morumbi estava lá. Mas foi necessário vetar o
estádio para poder fazer uma grande obra que, se não passar de R$ 1 bilhão, já
estamos no lucro. Manaus não tem time na primeira divisão. Natal, Cuiabá e Brasília
também.
DIPLOMATIQUE – Por que a iniciativa privada não coloca
dinheiro nesses projetos?
CARLOS VAINER– Para cada prefeitura, o BNDES deu uma
bolsa-estádio de R$ 400 milhões. Por que é que eu vou fazer um estádio de 250
se posso começar com 400? Por que botar meu dinheiro se tem o BNDES me dando a
juros subsidiados? De repente eu vou fazer um hotel. Mas o BNDES também
financia hotéis, tem uma linha de financiamento para empreendimentos e eventos
sociais variados. E vou ter isenção de IPTU. E não tocamos em um ponto
gravíssimo, que são as condições de trabalho nas obras associadas a esses
eventos. Apesar das afirmações de que os prazos estão sendo respeitados,
ninguém duvida de que eles estão atrasadíssimos. E as obras de mobilidade
também não vão ficar prontas a tempo. Evidentemente, nada está sendo feito.
Quando chegar 2012, 2013, vão começar a acelerar esse processo. Isso tem duas
dimensões: uma, mais dinheiro; dois, as condições de trabalho vão se degradar,
os acidentes de trabalho vão se multiplicar, a jornada vai ser estendida... É a
crônica da violação aos direitos trabalhistas anunciada. (Ver mais na pág.
8)
DIPLOMATIQUE – Um dos argumentos mais utilizados pelos
promotores da Copa são as estimativas dos recursos que serão gerados pelo
evento. Em geral, as projeções ultrapassam R$ 100 bilhões...
CARLOS VAINER– Realmente é um belo negócio, não há
dúvida. Copa do Mundo não tem a ver com esporte, mas com negócio. A questão é
saber quem se beneficia. Vou dar pequenos exemplos de diferentes maneiras de
abordar a aplicação de recursos. São recursos, quase todos públicos, que estão
gerando empregos. Mas esses postos de trabalho seriam gerados se os recursos
estivessem sendo aplicados na construção de hospitais, de escolas, em
saneamento básico, transporte público de massa. Existe uma coisa em economia
que se chama custo e oportunidade. É o custo e benefício comparado com outros
investimentos que você poderia fazer com esse mesmo recurso. Por exemplo,
investi R$ 1 bilhão no Maracanã. Isso gerou 1.500 empregos durante um ano e
meio. Mas esse mesmo R$ 1 bilhão gasto em habitação popular, saneamento básico,
postos de saúde, escolas e outras necessidades sociais também geraria 1.500
empregos, só que teria um efeito diferente porque o produto desse investimento
em si já seria um ganho social.
O segundo ponto é a forma de distribuição dos recursos
públicos. Por exemplo, a recepção de turistas pode ser feita por grandes
cadeias ou pode ser disseminada. Ao chegar hoje a Copenhague, na estação de
trem, você vai ao serviço de recepção de turistas e vão lhe perguntar: o senhor
quer ficar em um hotel ou em uma casa de família? Em que bairro? A prefeitura
cadastra famílias que têm um quarto, inspeciona, e elas recebem turistas. Por
que isso acontece? Porque, assim, a riqueza gerada é distribuída de maneira
mais ampla.
Com a alimentação é a mesma coisa. Se a concedo a
exclusividade da comercialização para uma única empresa, estou concentrando as
vantagens advindas daquele evento. É o que ocorre quando proíbo os ambulantes
de vender sanduíches. É a lógica do grande negócio para as grandes empresas. Se
vai acontecer um show de música no Ibirapuera, seu entorno vai encher de gente
que vai vender cerveja, sanduíche etc. Às vezes são trabalhadores
desempregados, às vezes são empregados que vão fazer um bico. [Na Copa] Não vai
ter isso! A repressão ao vendedor informal, ao trabalhador honesto que está na
rua tentando sobreviver, vai ser brutal. É fundamental esclarecer isso porque
há uma ilusão enorme, uma expectativa, porque as pessoas estão acostumadas com
um certo laxismo no Brasil. Quando há um grande fluxo de recursos em uma
direção, desse duto pinga alguma coisa para os de baixo, em um fenômeno que os
economistas chamam de efeito de gotejamento. As migalhas do banquete que caem
da mesa. [Na Copa] Não vai cair migalha. Eles são de um apetite interminável.
As experiências internacionais já mostraram isso. Os vendedores ambulantes das
cidades sul-africanas foram expulsos para 50 quilômetros das cidades. O espaço
público é entregue às grandes corporações, e os pobres não são removidos apenas
em termos habitacionais, mas em termos paisagísticos. Eles são cada vez mais
vistos como uma classe perigosa que deve ser mantida a distância.
DIPLOMATIQUE – O senhor desenha um quadro muito grave.
O governo tem possibilidades de atenuar essa situação?
CARLOS VAINER– Há algumas sinalizações positivas, mas
o essencial do aparelho de Estado brasileiro em nível federal, estadual e
municipal está comprometido com os grandes empreendimentos. Foi gerada toda uma
legislação de exceção que viabiliza esses eventos, disponibilizam-se recursos
públicos de maneira geral e há ainda uma ausência total de informação. O Estado
não informa sobre as escolhas. A legislação brasileira estabelece que obra de
impacto urbano tem de ser discutida com a sociedade. Quando é que a sociedade
discutiu a mudança do plano metroviário do Rio de Janeiro? Há uma falta de
informação total. Não se sabe quanto vai gastar, não se sabe quanto da
população será removida.
É o seguinte. Eu amo minha cidade, você ama a sua. E
gostamos que as pessoas venham visitá-la. Quando recebe um amigo de fora, você mostra
o que São Paulo tem de melhor. Faço a mesma coisa no Rio; não vou levá-lo para
ver a miséria. Isso é normal nas pessoas. Além disso, nós gostamos de esportes,
adoramos futebol, sou Fluminense. Pergunto: você gostaria de ter uma Copa do
Mundo em sua cidade? Claro, vai vir um monte de gente, vai ser uma festa, vamos
ter jogos de futebol... Esses sentimentos todos estão sendo manipulados. As
pessoas não sabem qual é o custo que isso vai ter. Elas não vão conseguir
comprar ingresso. O Maracanã, que já foi um estádio para 170 mil pessoas, está
resumido a 80 mil. O preço vai impedir o torcedor que mora na zona leste de São
Paulo de pegar uma passagem e entrar no estádio. E, provavelmente, ele não vai
conseguir nem beber a cervejinha dele porque a festa não é para ele. Só que a
gente não sabe disso, não temos essa experiência. Diante da total falta de
informação, acreditamos que vamos poder vender mais, ganhar mais, que vamos ver
jogo de futebol. Não vamos. É a manipulação de um sentimento legítimo que nós temos.
Ontem fui dormir tarde porque estava vendo a seleção brasileira feminina de
vôlei jogar. Eu gosto, fiquei emocionado quando tocou o hino porque elas
ganharam a medalha de ouro. Vai fazer o que comigo? Vai dizer que eu sou
idiota? Faz parte de nossa formação. E isso é manipulado de forma brutal. Há
muita dificuldade em desfazer esse sonho, o que só vai acontecer quando as
pessoas não puderem chegar a 5 quilômetros do Itaquerão, quando descobrirem que
o preço é inalcançável e que 80% das entradas foram vendidas na Europa. E elas
não vão poder tomar a cervejinha delas porque está proibido, só pode beber
Budweiser. Não vai poder comer o sanduíche da vovó, vai ter de comer fast food.
DIPLOMATIQUE – E o senhor identifica uma resistência
na sociedade civil?
CARLOS VAINER – Ela acontece. Já temos comitês
populares da Copa constituídos em todas as cidades-sede. Uma das bandeiras é
“Copa sim, remoção não”. Outra é “um tostão para a Copa, um tostão para a
educação, um para a saúde”. E há algumas vitórias. Em Porto Alegre, uma remoção
foi derrotada na luta. Há movimentos não apenas entre as comunidades populares
ameaçadas. Estou me referindo, por exemplo, à Associação Nacional de
Torcedores, que está na luta contra a elitização dos estádios. Há uma série de
grupos de esportistas que protestam porque propagandeiam que os Jogos Olímpicos
darão um grande impulso para a disseminação e popularização da prática
esportiva no país. Só que os recursos não fluem para isso. Há também alguns
setores sérios na imprensa... Embora achemos que a resistência aqui é pequena,
colegas de outros países se impressionaram com a maneira precoce de nos
organizarmos. Não se trata, evidentemente, de impedir que a Copa ou as
Olimpíadas sejam realizadas no Brasil, mas de assegurar que uma parcela desses
recursos seja destinada às necessidades sociais e que a população não seja
vitimada pela grande festa do negócio.
Luís Brasilino
Jornalista. Editor do Le Monde Diplomatique Brasil.
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Publicado na revista Le Monde Diplomatique Brasil em 01
de novembro de 2011.