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terça-feira, 31 de julho de 2012

"África do Sul 2010: legado no bolso da Fifa e seus parceiros"


Os sul-africanos acreditaram nas promessas de mais emprego, turistas e investimentos bilionários que viriam com a Copa. Mas, segundo Eddie Cottle, autor do livro Copa do Mundo da África do Sul: um legado para quem?, nada disso se materializou. Estariam os brasileiros caindo na mesma armadilha?
por Alexandre Praça

É só mencionar a palavra Fifa, que o sangue sobe à cabeça de Eddie Cottle. Sul-africano apaixonado pelo continente onde nasceu, ele estudou a fundo as promessas e o verdadeiro legado da Copa de 2010. “A Fifa e seus parceiros conseguiram os maiores lucros de sua história na África sem pagar um tostão de impostos”, esbraveja.
Eddie fala sobre o assunto com conhecimento de causa. Ele foi o coordenador da campanha por trabalho decente entre os sindicatos da construção no país – catalisador da greve de 70 mil trabalhadores em todos os estádios da Copa em 2009. Quatro anos de militância e estudos renderam o livro South Africa’s World Cup: A Legacy For Whom?(Copa do Mundo da África do Sul: um legado para quem?), lançado este ano e sem data para ser publicado no Brasil.
Encontrei Eddie em um seminário com operários do setor em Kharkov, Ucrânia, uma das cidades-sede da Eurocopa 2012. Falamos sobre acumulação de capital, o medo das obras atrasadas, as promessas de infraestrutura e o que espera o Brasil depois que o carnaval do futebol passar.

LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL– Começo com a pergunta do livro: a Copa do Mundo da África do Sul foi um legado para quem?
EDDIE COTTLE – Diziam que haveria um legado porque seria a primeira Copa do Mundo a ser realizada na África. Falavam que os ganhos seriam muito maiores que os investimentos públicos gastos para sediá-la. Também se dizia que, ao mostrar a África do Sul por meio da mídia mundial, o país receberia investimentos.
Houve ainda uma ideia de que, com o destaque de nossas belas paisagens, haveria uma explosão do turismo. Para os trabalhadores em geral e para o público, havia uma expectativa de que a Copa iria gerar emprego. Comentavam que haveria dinheiro fluindo para dentro do país por meio do turismo, dos investimentos, e assim por diante.
Mas a realidade é que a Copa não forneceu tudo o que a mídia prometia, nem em relação aos compromissos do documento de candidatura. O que vemos é que as copas do mundo são veículos para a acumulação de capital privado em uma escala global, em que a Fifa atua como facilitadora. Em termos de acumulação de capital, não há nada igual, nem mesmo nos velhos tempos do imperialismo ou na globalização moderna. A Copa recebe toda essa atenção precisamente porque os ultrapoderosos são aqueles que mais se beneficiam dela.
Para isso, eles fabricam mentiras descaradas para o público. Dizem que haverá grandes investimentos, que o país vai se beneficiar do turismo, que haverá emprego e [que o evento] trará toda essa glória para o país. Pelo menos o último ponto é verdadeiro. O país é deixado com a glória de sediar a Copa, mas a um custo significativo para a sociedade e os pobres em geral.

DIPLOMATIQUE– Então a Copa não deixa um legado?
EDDIE COTTLE – Se você quiser falar sobre o legado, eu diria o seguinte. Embora a Copa da África tenha sido um momento histórico, foi também ali que a Fifa e seus parceiros conseguiram obter os maiores lucros de sua história. Isso é simbólico porque representa uma relação neocolonial com o continente africano. As corporações multinacionais e essas grandes organizações sempre acham que podem fazer mais dinheiro com a África e com o chamado terceiro mundo.
Nesse sentido, houve um legado negativo. A Fifa e seus parceiros tiveram grandes lucros garantidos sem ter de pagar impostos para o país. Isso significou também que os sul-africanos precisaram oferecer muita coisa. Tivemos de garantir ruas “limpas” de pobreza. Tivemos de fazer novas leis para policiar efetivamente as profissionais do sexo. Significou que não poderia haver projetos de construção durante todo o mês da Copa, ou seja, perdemos uma contribuição para o PIB. Isso nunca é mencionado.
Há também a questão dos gastos deslocados. Se você analisar o fato de que houve uma despesa de 40 bilhões de rands [R$ 9 bilhões] e olhar para os dados de consumo do evento, verá que isso envolve o turismo dos próprios sul-africanos. Mais de 60% da renda do evento saiu do bolso dos locais. Então, onde está a evidência de que todo esse turismo iria trazer dinheiro para o país? Que os turistas iriam fornecer a maior parte da renda?

DIPLOMATIQUE – Explique isso melhor, por favor.
EDDIE COTTLE – Quando eu digo locais, quero dizer gastos dos habitantes do país com ingressos, alojamento em hotéis, transporte, compra de parafernálias como camisetas e lembrancinhas. A maior parte desses gastos foi feita pelos próprios sul-africanos. Isso basicamente quer dizer que o que realmente existe durante a Copa do Mundo é um deslocamento de consumo.
Dessa maneira, na verdade, nós perdemos dinheiro, porque grande parte desses recursos foi parar no bolso dos capitalistas mercantis da Fifa. Analisando um dos parceiros da Fifa, a Budweiser, você tem de consumir só o produto deles no estádio. Há também o cartão de crédito oficial, da Visa, e todas essas coisas. Por conta disso, há uma dívida crescente no âmbito nacional e internacional.
Esse nível de acumulação não é devidamente pesquisado. A maioria das análises se concentra na Fifa e seus parceiros comerciais, mas não no tipo de modelo que produz essa magnitude de acumulação. Por exemplo, quanta riqueza realmente deixa o país anfitrião por meio do envio de técnicos qualificados por parte dos parceiros comerciais? Quero dizer, os engenheiros de alto nível, mas também me refiro aos lucros. Existem os parceiros da Fifa na construção civil e firmas de arquitetos internacionais. Portanto, uma grande quantidade de dinheiro deixa o país por meio do envio de lucros ao exterior.
Nós importamos materiais, e isso não é descontado na conta final. Por exemplo, nos dois estádios mais espetaculares, o Soccer City e o da Cidade do Cabo, toda a cobertura foi importada. Acho que no Brasil o nível de gasto nesse tipo de coisa poderá ser ainda mais bizarro. Por isso é importante seguir o rastro do dinheiro. O que exatamente está sendo importado e o que está sendo feito por quem e onde. Não se podem determinar os custos e benefícios reais a menos que você faça esse tipo de análise. Tivemos milhões e milhões de fundos locais sendo canalizados ao exterior. Significa, portanto, que o dinheiro que deveria estar circulando na economia nacional não circulou.

DIPLOMATIQUE– No Brasil, toda a mídia está vendendo a ideia de que as arenas não estarão prontas a tempo para a Copa, e isso criará um constrangimento para o país. Essa é basicamente a preocupação de todos. Eu me pergunto se o mesmo tipo de pressão ocorreu na África do Sul.
EDDIE COTTLE – Bem, certamente isso ocorreu em duas ocasiões. A Fifa tentou apontar erros e para isso usou a pressão do prazo de conclusão dos estádios. Era um blefe para que eles impusessem seu sistema. Grande parte dos atrasos foi causada por mudanças no projeto arquitetônico. Era a Fifa querendo algo novo.
Por outro lado, isso nunca foi uma questão relacionada ao nível de produtividade. Os trabalhadores são sempre produtivos e de maneira até exagerada, porque esse evento mexia com o orgulho nacional. Apesar disso, os sindicatos compreenderam que os direitos do trabalho são direitos humanos fundamentais que não poderiam ser comprometidos nem mesmo em eventos dessa natureza. Isso nos ajudou muito a garantir os direitos dos trabalhadores em termos de salários e benefícios.
É um absurdo dizer que os estádios não poderão ser concluídos a tempo. Na África do Sul, algumas das arenas foram concluídas quatro meses antes do previsto. Todo o escarcéu da Fifa sobre a conclusão da infraestrutura na verdade é uma forma de pressionar os empreiteiros. Dessa maneira, a Fifa consegue garantir as mudanças que eles querem e quando querem.

DIPLOMATIQUE– E a mídia faz parte dessa jogada?
EDDIE COTTLE – Na realidade, quando estávamos tendo nossas greves, toda a mídia negativa veio de jornais internacionais. Colocavam manchetes como “A Copa do Mundo está em risco na África do Sul”. Nada disso era verdade. Eu sei disso porque estava meticulosamente acompanhando o andamento das obras junto com os municípios.
A grande questão é como todos esses diferentes capitais se acumulam. O Estado subsidia o evento, e os capitais nacionais e internacionais compartem o bolsão de fundos. O que você tem então é um processo global no qual a grande mídia imediatamente articula a posição negativa para atropelar os trabalhadores. Dependerá dos sindicatos, partidos políticos e outros grupos sociais formular uma resposta à forma como essas coisas são articuladas.

DIPLOMATIQUE– Em termos de legado positivo, o governo está dizendo que esta é a oportunidade de realizar os investimentos na infraestrutura de que o Brasil sempre precisou. Essas promessas foram cumpridas na África do Sul?
EDDIE COTTLE –É sempre importante separar o que é investimento para a Copa e o que é infraestrutura. O que se está fazendo é confundir as duas coisas. Sempre existem planos para infraestrutura, sejam eles de estradas, aeroportos ou outros tipos de sistema de transporte, que, naturalmente, são necessários para a economia. O que aconteceu na África foi que quase todas as iniciativas se voltavam para a Copa. Na verdade, o que é feito é adiantar os investimentos em infraestrutura.
Há consequências sobre o dinheiro gasto naquilo que não é de interesse nacional. Por exemplo, nós gastamos dinheiro em estádios que se tornaram elefantes brancos. Cerca de 4,5 bilhões de rands [R$ 1 bilhão] foram gastos no Green Point, na Cidade do Cabo, mas não precisávamos daquele estádio. Foi um desperdício de infraestrutura.
Eu acho que se pode dizer sim à infraestrutura, mas ficar de olho em como se gasta esse dinheiro e para qual finalidade. Porque isso compõe o espetáculo da Copa do Mundo. É uma espécie de grande carnaval, e tudo é justificável para realizá-lo. Então, você precisa colocar no estádio todas essas luzes, cores e roupagens para que ele não se pareça aos da Alemanha. Tivemos uma competição interminável sobre qual cidade tinha o estádio mais extravagante e luxuoso, sem consideração às necessidades sociais.

DIPLOMATIQUE– Que consequências esse desperdício trouxe para o país?
EDDIE COTTLE – Neste momento, a África do Sul e os países vizinhos estão perdendo mais investimentos locais do que recebendo investimento estrangeiro direto. Isso porque a Copa do Mundo não traz investimento estrangeiro direto. O que se cria é um subsídio para pessoas visitarem o país. Mas não se investe realmente. Há também o problema do turismo neste período de contração econômica, com desemprego e salários diminuindo. Assim, não se concretizou o número de turistas previstos durante nem depois da Copa.
Outro ponto: é justificável aplicar esse volume de recursos com base em uma suposição? Porque é suposição, não ciência. Você não está dizendo: “Se eu gastar 1 bilhão, garanto que nos próximos dez anos vamos ter 200 milhões de turistas” e, portanto, seria possível calcular a quantidade de dinheiro que vamos ganhar. Isso não é possível. É pura economia da suposição.
Eu diria que não vale a pena gastar todo esse dinheiro. É realmente parte da construção da marca da Fifa e de seus parceiros. É parte do plano de criação de um espetáculo para exportação e, dessa forma, você chama o interesse do público e a atenção para a Copa do Mundo. Essencialmente, o Estado precisa justificar essa quantidade enorme de gastos.

DIPLOMATIQUE– No caso específico dos estádios, quais são os problemas financeiros causados por essa carga de investimentos?
EDDIE COTTLE – Vão dizer que agora o país possui a infraestrutura necessária e que não haverá problemas para manter todos os estádios. Mas não dirão que daqui a quinze anos será necessário substituir o teto do estádio, e isso terá um custo enorme. Porque aí terão de pedir que o fabricante da Alemanha reinvista naquele estádio.
Em segundo lugar, haverá mais concorrência por parte dos proprietários do estádio para receber os subsídios dos municípios. Por exemplo, eu sei que no Brasil o Estado subsidia 60% dos investimentos. Isso quer dizer que o governo é uma das partes mais interessadas. Por isso, tem o dever de garantir a sustentabilidade do investimento, senão haverá uma comoção pública. Significa também que o Estado tem de tirar dinheiro de investimentos sociais.
Em terceiro, há o desenvolvimento desigual e desarticulado. Isso acontece, por exemplo, com outras instalações esportivas menores. O novo investimento obriga que todos os jogos sejam realizados no novo estádio. É o que está ocorrendo na África do Sul agora. Existiam alguns estádios menores muito bons que agora não estão sendo usados porque é preciso usar a nova arena. Eu prevejo claramente que o Brasil terá problemas financeiros particularmente com os estádios, e isso irá gerar preocupações no futuro próximo.

DIPLOMATIQUE– Se você pudesse dar um conselho aos sindicatos no Brasil sobre o que deu errado na África do Sul e você faria diferente, qual seria?
EDDIE COTTLE – O primeiro problema foi que os sindicatos não entenderam as implicações econômicas do evento. Eles também caíram nas promessas da Copa do Mundo e o que ela iria trazer para os trabalhadores. Isso acabou definindo o papel dos sindicatos e suas demandas em relação ao evento. Nós começamos nesse processo sem entender direito a articulação do dinheiro, como ele iria circular e beneficiar a nação. Os únicos dados eram aqueles produzidos pelos entusiastas da Copa e pelos institutos econômicos e suas mentiras descaradas.
Em segundo lugar, no que diz respeito às greves, como foram transmitidas internacionalmente. Toda greve é colocada em nível internacional. E isso é uma grande oportunidade. Nós tivemos muita atenção da mídia internacional, foi inacreditável. A maneira de entender esse evento irá moldar como se podem relacionar as realidades sociais dos trabalhadores com essas percepções que a mídia nacional e internacional irão gerar em relação ao público. Você tem de agarrar a mídia pelos chifres.

Alexandre Praça
Jornalista

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Publicado na revista Le Monde Diplomatique Brasil em 01 de novembro de 2011.

"A Lei Geral dos interesses particulares"


Autoridades brasileiras parecem admitir que a recepção de um megaevento esportivo autoriza também megaviolações de direitos, megaendividamento público e megairregularidades. É preciso questionar a legitimidade dessa relação de vassalagem política, que endossa negócios privados que geram considerável ônus público
por Leandro Franklin Gorsdorf

- Quem votar a favor da Lei Geral ganha ingresso para a final!
Diz-se que agosto é mês de desgosto. Pelo andar da carruagem, novembro quer assumir a alcunha este ano. Joseph Blatter, presidente da Fifa, já declarou que poderá vir pessoalmente ao Brasil nesse período para aparar, de uma vez por todas, as arestas com o governo federal sobre a legislação que regulamentará a realização da Copa do Mundo de 2014.
O meio de campo político desse encontro permanece conturbado: além de um conjunto de escândalos e acusações direcionadas ao ex-ministro dos Esportes, Orlando Silva – que vinha intermediando as negociações –, segue-se uma falsa disputa que envolve, de um lado, os entes federativos e, de outro, as instituições organizadoras, em torno de um conjunto de alterações legislativas e medidas administrativas de caráter excepcional. No centro da discussão, o Projeto de Lei n. 2.330/2011, a chamada Lei Geral da Copa, apresentada em setembro ao Congresso.
A tendência desconcertante, contudo, é que essa queda de braço se transforme, paulatinamente, num caloroso aperto de mão. Afinal, ambos os lados parecem admitir, ainda que com pequenas divergências, que a recepção de um megaevento esportivo como esse autoriza também megaviolações de direitos, megaendividamento público e megairregularidades.

Ex-porte: negócios privados, ônus público
Este é o padrão do modelo empresarial assumido pelo Mundial de Futebol e pelas Olimpíadas em suas edições anteriores: especulação imobiliária em Barcelona, remoções maciças em Pequim, superendividamento na Grécia, higienização social na África do Sul. Tais casos são sintomas de que já não está em jogo o esporte, mas, primordialmente, o leque de possibilidades econômicas a ele vinculado. E, como em toda atividade capitalista, também aqui emerge um esforço bastante weberiano dos agentes de mercado por garantir previsibilidade e calculabilidade para seus investimentos.
Essas garantias são, amiúde, traduzidas na forma de uma demanda das empresas, dos consórcios e das instituições financeiras por maior segurança jurídica em suas transações. Concretamente, a Fifa tem sido o canal de vazão desses interesses, a partir do conjunto de contratos de caráter particular entabulados com os países anfitriões e cidades-sede, desde o momento de sua candidatura. Cadernos de Encargos, Matrizes de Responsabilidade e Host City Agreementsestabelecem uma série de exigências aos países, muitas das quais representando, na prática, significativos prejuízos à sua própria população. Portanto, uma equação de ganhos e perdas que não é equânime. É preciso urgentemente questionar a legitimidade social desse tipo de relação de vassalagem política, que endossa um bloco de negócios privados gerador de considerável ônus público.

Ordem e desordem jurídica
Vale dizer: a maior parte dessas movimentações se processa à revelia ou em contradição com os próprios ordenamentos jurídicos nacionais. Por esse motivo é tão importante para organismos como a Fifa a aprovação de mudanças na legislação interna dos países. A atual proposta de Lei Geral da Copa, por sua vez, é também fruto de pressões desse tipo e se insere num panorama mais amplo de mutação jurídica encomendada.
Perante as diversas leis e atos “de exceção”, a dúvida que resta é se direitos fundamentais constitucionalmente considerados cláusulas pétreas, isto é, princípios intocáveis pelo próprio Poder Legislativo, podem ser abolidos ou atropelados por acordos com a Fifa e o COI. Processo semelhante de desconstrução de direitos não é novo no Brasil, e têm sido reiteradas as tentativas de enfraquecê-los. Uma das estratégias mais frequentes nesse campo é a utilização de medidas provisórias, que, de instrumentos de exceção, passaram a constituir ferramenta cotidiana de ingerência imediata do Executivo: com Fernando Henrique Cardoso, foram editadas 82 delas; com Lula, 72.
Parafraseando Giorgio Agamben, é possível afirmar que quando a exceção se transforma em regra, ou melhor, quando regra e exceção se mostram indistinguíveis, ordem e desordem jurídicas se confundem, e o paradigma da política tem no campo, seja ele de extermínio, de concentração ou de refugiados – e, talvez, em nosso caso, o de futebol –, sua principal referência e imagem da exclusão.

Interesses enviesados e oportunidades políticas
Sujeitas a essa dinâmica, outras alterações legais precedem a própria Lei Geral. Inúmeras formas de isenção fiscal, por exemplo, têm sido disciplinadas em diplomas, como o Decreto n. 7.578/2011. É igualmente central na engenharia jurídica da Copa a recente Lei n. 12.462/2011, que instituiu o Regime Diferenciado de Contratações Públicas, ou simplesmente RDC, um verdadeiro atalho à Lei de Licitações. Não por acaso, essa brecha foi aberta com a picareta de uma medida provisória, a MPV n. 527, de 2011. Aliás, uma não, mas várias, pois, na realidade, foram necessárias quatro tentativas do governo e sua bancada congressual até a aprovação definitiva da lei. Em todas elas, foram inseridos a posteriori os respectivos artigos em normas que versavam sobre temas diversos. No caso da MPV n. 527, os enxertos foram levados a cabo num texto que originalmente dispunha sobre a criação da Secretaria de Aviação Civil. Antes dela, as MPVs n. 489 e n. 521 haviam perdido eficácia por falta de apreciação, e a MPV n. 503 fora rejeitada, ainda em 2010. Uma trajetória no mínimo curiosa para uma lei que regulamenta o destino de dezenas de bilhões de reais. Para ser mais exato, R$ 112 bilhões, segundo um estudo elaborado pela Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (ABDIB), parceira, inclusive, da CBF.
Diante de tais evidências, não se sustenta o discurso oficial do “legado”. Há outros interesses mais prementes e menos anunciáveis em pauta, entre eles a repercussão política de hospedar os jogos, marco que deveria simbolizar a projeção definitiva do Brasil como protagonista regional e internacional. Nenhuma oportunidade melhor do que uma Copa no “país do futebol” para festejar o baile de debutante do novo global player. Em nome desse objetivo, vale forjar consensos e escamotear os conflitos sociais emergentes, manipulando o imaginário ufanista que o evento naturalmente suscita. Valem também barganhas políticas nas quais entra até mesmo o novo Código Florestal, que tampouco saiu ileso da avalanche de modificações legais em marcha: já foi introduzida no Senado a possibilidade de desmatamento em Áreas de Preservação Permanente para as obras relacionadas à Copa do Mundo.

O jogo dos sete erros
Num contexto como esse, a proposta de uma Lei Geral da Copa surge como mais um pacote de violação de direitos e de abertura de precedentes incômodos em nossa legislação, com os quais, mais cedo ou mais tarde, teremos de nos haver. Para além do alarmismo sobre as pressões e ameaças da Fifa, é imprescindível uma avaliação cuidadosa de ao menos sete dos principais pontos críticos do projeto:

1. Proteção da propriedade industrial
Trata-se da criação de um “regime especial” de procedimentos para pedidos de registro de marcas, emblemas e demais “símbolos oficiais” da Fifa junto ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi), para fins de proteção de propriedade industrial. Contudo, não há qualquer restrição ou definição sobre o significado do termo “símbolos oficiais”, que pode abranger, efetivamente, qualquer imagem, ideia e mesmo expressões linguísticas. Mais de mil itens já foram objeto de requisição de registro pela entidade, entre eles o nome das cidades-sede e até o numeral “2014”. De fato, estamos diante de um processo de privatização da cultura por meio da constituição de direitos de uso exclusivistas. Para piorar a situação, o artigo 5º, §1º, I do projeto de lei prevê que “o Inpi não requererá à Fifa a comprovação da condição de alto renome de suas marcas ou da caracterização de suas marcas como notoriamente conhecidas”, deixando, na prática, a cargo tão somente da arbitrariedade da organização a escolha do menu de bens imateriais que monopolizará.

2. Direitos de imagem, som e radiodifusão
Na mesma tônica segue o capítulo sobre captação de imagem, som e retransmissão dos jogos e eventos paralelos. Aqui, a Fifa é considerada “titular exclusiva” de todos os direitos a eles relacionados, podendo impedir a presença da imprensa – como, em todo caso, já ocorreu durante o sorteio das eliminatórias, em julho – e selecionar os “flagrantes de imagem” de tempo limitado que disponibilizará para uso não comercial em noticiários e congêneres.

3. Áreas de restrição comercial
Outra decorrência importante da Lei Geral da Copa diz respeito às restrições e condicionantes impostas ao direito de ir e vir e à livre-iniciativa. De acordo com o artigo 11 do projeto, seria concedida “à Fifa e às pessoas por ela indicadas a autorização para, com exclusividade, divulgar suas marcas, distribuir, vender, dar publicidade ou realizar propaganda de produtos e serviços, bem como outras atividades promocionais ou de comércio de rua” em locais como imediações de estádios e suas vias de acesso. Essa disposição implica uma proibição de venda ou exposição de quaisquer mercadorias dentro desses perímetros que não obtenham permissão expressa da entidade, impactando fortemente o comércio local e os trabalhadores ambulantes. Ademais, sugere a possibilidade de demarcação de territórios de interdição, com a instalação das chamadas Zonas de Exclusão, podendo inviabilizar ou dificultar, inclusive, o funcionamento de equipamentos públicos essenciais próximos, como escolas e hospitais.

4. Venda e preço de ingressos
Ignorando direitos do consumidor, a proposta de lei oferece à Fifa amplos poderes para determinar tanto o preço quanto as regras de compra e venda, alteração e cancelamento de ingressos. Tais critérios poderão ser estabelecidos unilateralmente e sem aviso prévio pela entidade, nos termos do artigo 33, incluindo-se a supressão do direito de arrependimento e a permissão da prática comercial abusiva da venda casada.
Não bastasse isso, a pressão do organismo avança sobre assuntos ainda não constantes da proposta entregue ao Congresso. A intenção declarada da Fifa é suspender também parte do Estatuto do Torcedor, do Estatuto do Idoso e do Código de Defesa do Consumidor, para anular o direito de meia-entrada para estudantes e idosos. Os brasileiros, ao que tudo indica, não estão convidados para a festa em sua própria casa.

5. Tipos penais, sanções civis e juízos especiais
Especialmente alarmante, no projeto, é a confecção de três tipos penais específicos, os crimes de “Utilização indevida de símbolos oficiais”, “Marketing de emboscada por associação” e “Marketing de emboscada por intrusão”, de natureza pontual e temporária. Acompanhando as penas de detenção e multa, um conjunto de sanções civis relacionadas à venda de produtos, uso de ingressos e atividades de publicidade. Medidas como essas desconsideram todas as críticas à tendência de hiperpenalização já acentuada na política criminal brasileira e à punição seletiva do sistema penal. Os pobres continuam sendo, afinal, seus “clientes preferenciais”.
Fechando o circuito de criminalização da espontaneidade, o artigo 37, timidamente inserido nas disposições finais do projeto, permite criar juizados especiais, varas, turmas e câmaras especializadas para causas relativas aos eventos. A disposição, nesse caso, é flagrantemente inconstitucional e pretende instituir uma justiça paralela dentro do sistema vigente, na esteira do modelo sul-africano, que inovou com a criação de 56 Tribunais Especiais da Copa. A legislação aplicada por esses tribunais de exceção também se mostrou absolutamente desproporcional: condenações de quinze anos por furto de uma câmera fotográfica e distinções entre turistas brancos e negros fizeram parte da lista de absurdos da edição de 2010. No Brasil, ministros do STF, como Marco Aurélio Mello, já se manifestaram desfavoráveis à proposta. Resta saber se seguiremos ou não o rastro de repressão da Jabulani.

6. Vistos de entrada e permissões de trabalho
A ideologia da soberania, que em alguns momentos tanto atormenta o Estado brasileiro, não parece causar celeuma diante de pressões externas. Para a Copa do Mundo de 2014, a combinação é no mínimo inusitada: proibições de acesso para cidadãos brasileiros e liberação sumária do ingresso para membros, funcionários, parceiros, convidados, delegados ou clientes da Fifa. Segundo consta no projeto de Lei Geral, seria suficiente sua credencial para afastar qualquer discricionariedade na concessão de vistos de entrada em território nacional, assemelhando o país a uma gigantesca arquibancada. A síntese é a seguinte: instalação de fronteiras internas no espaço de nossas cidades e dissolução das fronteiras externas sob o ditame de organismos internacionais. Basta comprar seu ingresso.

7. Responsabilidade da União
Por fim, como todo empreendimento necessita de garantias, a Fifa soube escolher bem as suas: ninguém menos que a própria União deve assumir a responsabilidade por danos e prejuízos causados à entidade. Pela forma como se encontra redigido o artigo 30 do projeto de lei, não se trata apenas de responsabilidade civil pessoal. Ao contrário, a União responderá amplamente por “todo e qualquer dano resultante ou que tenha surgido em função de qualquer incidente ou acidente de segurança relacionado aos eventos”. Nada poderia ser mais genérico e, em última instância, quase toda eventualidade se enquadraria nessa formulação, aumentando substancialmente a conta da Copa do Mundo em reparações e indenizações com verbas públicas. A situação é kafkiana. O Estado brasileiro tornou-se de repente, não mais que de repente, o fiador da Fifa em seus negócios particulares.

Batendo bola, mas também panela
Num balanço geral, o horizonte é suficientemente caótico para justificar inquietação. Algumas reações têm sido esboçadas por movimentos sociais, setores da academia, órgãos e instituições de fiscalização e defesa de direitos. A Relatora Especial para o Direito Humano à Moradia Adequada da ONU, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão e o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana já se manifestaram, reconhecendo a existência de motivos de sobra para preocupação.
No tocante às alterações legislativas, foram ajuizadas até o momento duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade contra o RDC. A mais abrangente delas, interposta pelo Ministério Público Federal, questiona diversos aspectos formais e materiais da lei. Isso parece indicar que o campo judicial será um dos espaços de disputa acerca do modelo imposto de realização do evento, a exemplo do que atualmente ocorre com outros grandes projetos, como a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte.
A sociedade não está omissa nem pretende assistir passivamente a esse processo. Nas doze cidades-sede dos jogos do Mundial já existem Comitês Populares de composição ampla, os quais têm saído às ruas e se posicionado de maneira crítica, a favor do esporte, mas contra sua utilização como desculpa para violações de direitos, mau uso de recursos públicos, criminalização da pobreza, limpeza étnico-social, mercantilização e militarização das cidades brasileiras. Desde 2010, esses atores encontram-se organizados também numa Articulação Nacional Popular dos Megaeventos, produzindo contrainformação, mobilização e resistências. O pontapé inicial está dado. Mesmo que o Estado se recuse a assumir seu papel de árbitro justo nessa partida, os movimentos populares não estão dispostos a retirar seu time de campo.

Leandro Franklin Gorsdorf
Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná.

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Publicado na revista Le Monde Diplomatique Brasil em 01 de novembro de 2011.

"Estamos sofrendo uma manipulação brutal"

Carlos Vainer, professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ, denuncia a manipulação do amor dos brasileiros por sua cidade e pelo futebol como forma de conquistar apoio para a realização da Copa do Mundo. Ele alerta: é um grande negócio para as grandes empresas, não vão sobrar migalhas
por Luís Brasilino

DIPLOMATIQUE – No estudo “Cidades de exceção: reflexões a partir do Rio de Janeiro”, o senhor afirma que os megaeventos realizam de maneira plena e intensa a cidade de exceção. O que isso significa na prática? 
CARLOS VAINER – São processos resultantes de uma maneira de pensar a cidade que se fortaleceu com a ofensiva neoliberal. Esta pensa a intervenção do Estado na economia e na vida social como essencialmente perversa, já que o mercado seria a forma mais adequada de alocar recursos da sociedade. Na cidade, isso se materializa em uma crítica feroz a todas as formas de organização que caracterizaram o planejamento urbano desde o fim da Segunda Guerra Mundial e que tinham como elemento principal um plano de ocupação do solo que leva em conta a cidade como um todo, buscando racionalizar o crescimento e a evolução da cidade e organizar a ocupação do espaço. Esse planejamento centralizado, muitas vezes tecnocrático e autoritário, foi objeto de duas críticas. A primeira, de movimentos populares, reivindica descentralização, com participação expressiva da sociedade civil no planejamento da cidade. A outra crítica identifica a intervenção do Estado como um obstáculo ao livre desenvolvimento urbano. Assim, o planejamento centralista, tecnocrático e autoritário que existia durante a ditadura militar recebe, nos anos 1980 e 1990, um ataque pela esquerda e outro pela direita. E, apesar da Constituição de 1988 estabelecer que todas as cidades com mais de 20 mil habitantes devem ter um plano diretor, ao longo da década seguinte a correlação de forças vai caminhar em direção ao projeto neoliberal. Este vai atacar de maneira brutal todas as formas de regulamentação. Mesmo com a aprovação do Estatuto das Cidades, o que avança é a concepção da cidade pensada como empresa, que compete com outras “empresas” em um mercado mundial de cidades para atrair capitais, investimentos, turistas. Isso promove uma guerra aberta de cidades contra cidades, cada uma oferecendo vantagens mais absurdas que a outra para atrair capitais.
Se a cidade é pensada no modelo de empresa, ela deve ser dirigida como tal, não pode ficar submetida a regras rígidas, tem de ser flexível e capaz de aproveitar as janelas de oportunidade que o mercado mundial oferece. Na legislação brasileira, essa flexibilização toma a forma da “operação urbana”, que autoriza o governo local a desrespeitar as leis sempre que houver uma negociação caso a caso. Isso passa a dominar o planejamento de algumas cidades, excluindo a ideia de um planejamento compreensivo, ainda mais o planejamento democrático-participativo. Em uma empresa, não dá para fazer democracia, tem de fazer negócio. E como o negócio é feito? Caso a caso. Com as parcerias público-privadas, uma negociação caso a caso entre poder local e as empresas privadas, a cidade inteira torna-se objeto de negociação, como acontece no Rio de Janeiro. Essa cidade em que a negociação ad hoc impõe-se sobre a regra geral é uma cidade cada vez mais regida pela exceção.

DIPLOMATIQUE – E como a Copa do Mundo atua nesse contexto?
CARLOS VAINER– O megaevento agudiza e aprofunda essa ideia de cidade de exceção: as regras todas vão para o espaço. A legislação de exceção produzida para acolher esses eventos é o exemplo mais puro do que estou falando. Por exemplo, todas as empresas associadas ao COI e à Fifa não pagam impostos. A lei de responsabilidade fiscal, que estabelece um limite de endividamento, é flexibilizada para obras associadas a megaeventos. Por que um município pode se endividar para fazer um estádio e não pode para fazer saneamento básico? A Fifa agora quer proibir a comercialização de qualquer produto que não seja de seus associados em um raio de 2 quilômetros dos eventos e das áreas de interesse dos jogos. E também viola direitos humanos consagrados em nossa Constituição, como o direito à moradia. Em nome desses projetos, atualmente se procede a uma limpeza social e étnica, expulsando populações; 170 mil pessoas serão removidas em nosso país.

DIPLOMATIQUE – Essa cidade de exceção tem um corte de classe, ou seja, quem perde e quem ganha com esse modelo?
CARLOS VAINER– A cidade de exceção é uma face da moeda. A outra é o que chamo de democracia direta do capital, com a cidade segmentada em projetos singulares, cada um deles sendo objeto de uma negociação particular, que denominam publicamente de parceria público-privada. A área portuária do Rio de Janeiro é um caso insuperável. Nela, 5 milhões de metros quadrados, praticamente no centro do Rio, foram entregues a uma operação urbana; um consórcio empresarial, que evidentemente não foi eleito para isso, que vai ter poder de governo sobre uma parte vital da cidade. E com financiamento público. É um deslocamento brutal de recursos públicos não apenas financeiros, mas fundiários, de potencial construtivo, paisagístico. Em Curitiba, o Atlético Paranaense vai construir o estádio da Copa, só que a prefeitura ampliou o índice de ocupação nessa área, de maneira que, em potencial construtivo, transferiu para o clube o equivalente ao que ele vai gastar no estádio. Alguns projetos só podem ser explicados por uma vontade antipopular profunda. A Vila Autódromo no Rio de Janeiro está sendo deslocada apenas porque o pobre é considerado um vizinho indesejável; não há nenhum projeto que ocupe aquela área. Em Pequim, essa limpeza social teve efeitos dramáticos: mais de 1 milhão de pessoas foram deslocadas. Na África do Sul, foram realizadas operações nas áreas próximas aos estádios para impedir que os pobres “poluíssem” o caminho.
Voltando ao termo, não é que vai se seguir a legislação vigente sobre a ocupação e o uso dos espaços públicos. Não. É feita uma legislação de exceção. A Lei Geral da Copa estabelece uma pena específica para o uso indevido do logo da Fifa. Se você usa indevidamente uma marca comercial, você estava passível de sofrer as penalidades da lei. Mas aqui não; existe uma tipificação criminal de exceção. Foi criada uma secretaria especial de segurança dos grandes eventos no âmbito do Ministério da Justiça. Estamos criando novos órgãos no Estado. Tribunais especiais de exceção.
A soberania de espaços públicos é entregue a uma entidade privada estrangeira. Quer dizer, quem determina quem entra em espaços públicos e quanto se paga vão ser eles. Sabemos que querem eliminar o direito à meia-entrada. No Pan do Rio em 2007, um contrato com uma empresa de fast food proibia a entrada de qualquer alimento nos estádios. O sanduíche da sua namorada ou da sua avó não poderia adentrar no Engenhão porque você estava obrigado a comer o “saudável” hambúrguer da tal rede. Para ver se não portavam comida, as pessoas eram revistadas na entrada do estádio. Não podia entrar com água. Veja bem, regime de exceção é um termo delicado para isso.

DIPLOMATIQUE – E os estádios, o senhor acredita que eles poderão levar desenvolvimento ao menos para as regiões onde serão instalados?
CARLOS VAINER– Falemos de experiências concretas. Em Pequim, os grandes equipamentos estão vazios. Na África do Sul, já discutem a demolição de alguns estádios. O Parque Aquático Maria Lenck, feito para o Pan, não serve para as Olimpíadas. Em Brasília, eles pretendiam fazer um estádio de 70 mil lugares para poder competir com São Paulo pela abertura – agora sabemos que São Paulo foi escolhida, mas, de qualquer maneira, um estádio da Copa tem de ter 40 mil lugares. Vocêsabe qual é o público médio de Brasília? Duas a três mil pessoas. Em São Paulo, o Morumbi estava lá. Mas foi necessário vetar o estádio para poder fazer uma grande obra que, se não passar de R$ 1 bilhão, já estamos no lucro. Manaus não tem time na primeira divisão. Natal, Cuiabá e Brasília também.

DIPLOMATIQUE – Por que a iniciativa privada não coloca dinheiro nesses projetos?
CARLOS VAINER– Para cada prefeitura, o BNDES deu uma bolsa-estádio de R$ 400 milhões. Por que é que eu vou fazer um estádio de 250 se posso começar com 400? Por que botar meu dinheiro se tem o BNDES me dando a juros subsidiados? De repente eu vou fazer um hotel. Mas o BNDES também financia hotéis, tem uma linha de financiamento para empreendimentos e eventos sociais variados. E vou ter isenção de IPTU. E não tocamos em um ponto gravíssimo, que são as condições de trabalho nas obras associadas a esses eventos. Apesar das afirmações de que os prazos estão sendo respeitados, ninguém duvida de que eles estão atrasadíssimos. E as obras de mobilidade também não vão ficar prontas a tempo. Evidentemente, nada está sendo feito. Quando chegar 2012, 2013, vão começar a acelerar esse processo. Isso tem duas dimensões: uma, mais dinheiro; dois, as condições de trabalho vão se degradar, os acidentes de trabalho vão se multiplicar, a jornada vai ser estendida... É a crônica da violação aos direitos trabalhistas anunciada. (Ver mais na pág. 8)

DIPLOMATIQUE – Um dos argumentos mais utilizados pelos promotores da Copa são as estimativas dos recursos que serão gerados pelo evento. Em geral, as projeções ultrapassam R$ 100 bilhões...
CARLOS VAINER– Realmente é um belo negócio, não há dúvida. Copa do Mundo não tem a ver com esporte, mas com negócio. A questão é saber quem se beneficia. Vou dar pequenos exemplos de diferentes maneiras de abordar a aplicação de recursos. São recursos, quase todos públicos, que estão gerando empregos. Mas esses postos de trabalho seriam gerados se os recursos estivessem sendo aplicados na construção de hospitais, de escolas, em saneamento básico, transporte público de massa. Existe uma coisa em economia que se chama custo e oportunidade. É o custo e benefício comparado com outros investimentos que você poderia fazer com esse mesmo recurso. Por exemplo, investi R$ 1 bilhão no Maracanã. Isso gerou 1.500 empregos durante um ano e meio. Mas esse mesmo R$ 1 bilhão gasto em habitação popular, saneamento básico, postos de saúde, escolas e outras necessidades sociais também geraria 1.500 empregos, só que teria um efeito diferente porque o produto desse investimento em si já seria um ganho social.
O segundo ponto é a forma de distribuição dos recursos públicos. Por exemplo, a recepção de turistas pode ser feita por grandes cadeias ou pode ser disseminada. Ao chegar hoje a Copenhague, na estação de trem, você vai ao serviço de recepção de turistas e vão lhe perguntar: o senhor quer ficar em um hotel ou em uma casa de família? Em que bairro? A prefeitura cadastra famílias que têm um quarto, inspeciona, e elas recebem turistas. Por que isso acontece? Porque, assim, a riqueza gerada é distribuída de maneira mais ampla.
Com a alimentação é a mesma coisa. Se a concedo a exclusividade da comercialização para uma única empresa, estou concentrando as vantagens advindas daquele evento. É o que ocorre quando proíbo os ambulantes de vender sanduíches. É a lógica do grande negócio para as grandes empresas. Se vai acontecer um show de música no Ibirapuera, seu entorno vai encher de gente que vai vender cerveja, sanduíche etc. Às vezes são trabalhadores desempregados, às vezes são empregados que vão fazer um bico. [Na Copa] Não vai ter isso! A repressão ao vendedor informal, ao trabalhador honesto que está na rua tentando sobreviver, vai ser brutal. É fundamental esclarecer isso porque há uma ilusão enorme, uma expectativa, porque as pessoas estão acostumadas com um certo laxismo no Brasil. Quando há um grande fluxo de recursos em uma direção, desse duto pinga alguma coisa para os de baixo, em um fenômeno que os economistas chamam de efeito de gotejamento. As migalhas do banquete que caem da mesa. [Na Copa] Não vai cair migalha. Eles são de um apetite interminável. As experiências internacionais já mostraram isso. Os vendedores ambulantes das cidades sul-africanas foram expulsos para 50 quilômetros das cidades. O espaço público é entregue às grandes corporações, e os pobres não são removidos apenas em termos habitacionais, mas em termos paisagísticos. Eles são cada vez mais vistos como uma classe perigosa que deve ser mantida a distância.

DIPLOMATIQUE – O senhor desenha um quadro muito grave. O governo tem possibilidades de atenuar essa situação?
CARLOS VAINER– Há algumas sinalizações positivas, mas o essencial do aparelho de Estado brasileiro em nível federal, estadual e municipal está comprometido com os grandes empreendimentos. Foi gerada toda uma legislação de exceção que viabiliza esses eventos, disponibilizam-se recursos públicos de maneira geral e há ainda uma ausência total de informação. O Estado não informa sobre as escolhas. A legislação brasileira estabelece que obra de impacto urbano tem de ser discutida com a sociedade. Quando é que a sociedade discutiu a mudança do plano metroviário do Rio de Janeiro? Há uma falta de informação total. Não se sabe quanto vai gastar, não se sabe quanto da população será removida.
É o seguinte. Eu amo minha cidade, você ama a sua. E gostamos que as pessoas venham visitá-la. Quando recebe um amigo de fora, você mostra o que São Paulo tem de melhor. Faço a mesma coisa no Rio; não vou levá-lo para ver a miséria. Isso é normal nas pessoas. Além disso, nós gostamos de esportes, adoramos futebol, sou Fluminense. Pergunto: você gostaria de ter uma Copa do Mundo em sua cidade? Claro, vai vir um monte de gente, vai ser uma festa, vamos ter jogos de futebol... Esses sentimentos todos estão sendo manipulados. As pessoas não sabem qual é o custo que isso vai ter. Elas não vão conseguir comprar ingresso. O Maracanã, que já foi um estádio para 170 mil pessoas, está resumido a 80 mil. O preço vai impedir o torcedor que mora na zona leste de São Paulo de pegar uma passagem e entrar no estádio. E, provavelmente, ele não vai conseguir nem beber a cervejinha dele porque a festa não é para ele. Só que a gente não sabe disso, não temos essa experiência. Diante da total falta de informação, acreditamos que vamos poder vender mais, ganhar mais, que vamos ver jogo de futebol. Não vamos. É a manipulação de um sentimento legítimo que nós temos. Ontem fui dormir tarde porque estava vendo a seleção brasileira feminina de vôlei jogar. Eu gosto, fiquei emocionado quando tocou o hino porque elas ganharam a medalha de ouro. Vai fazer o que comigo? Vai dizer que eu sou idiota? Faz parte de nossa formação. E isso é manipulado de forma brutal. Há muita dificuldade em desfazer esse sonho, o que só vai acontecer quando as pessoas não puderem chegar a 5 quilômetros do Itaquerão, quando descobrirem que o preço é inalcançável e que 80% das entradas foram vendidas na Europa. E elas não vão poder tomar a cervejinha delas porque está proibido, só pode beber Budweiser. Não vai poder comer o sanduíche da vovó, vai ter de comer fast food.

DIPLOMATIQUE – E o senhor identifica uma resistência na sociedade civil?
CARLOS VAINER – Ela acontece. Já temos comitês populares da Copa constituídos em todas as cidades-sede. Uma das bandeiras é “Copa sim, remoção não”. Outra é “um tostão para a Copa, um tostão para a educação, um para a saúde”. E há algumas vitórias. Em Porto Alegre, uma remoção foi derrotada na luta. Há movimentos não apenas entre as comunidades populares ameaçadas. Estou me referindo, por exemplo, à Associação Nacional de Torcedores, que está na luta contra a elitização dos estádios. Há uma série de grupos de esportistas que protestam porque propagandeiam que os Jogos Olímpicos darão um grande impulso para a disseminação e popularização da prática esportiva no país. Só que os recursos não fluem para isso. Há também alguns setores sérios na imprensa... Embora achemos que a resistência aqui é pequena, colegas de outros países se impressionaram com a maneira precoce de nos organizarmos. Não se trata, evidentemente, de impedir que a Copa ou as Olimpíadas sejam realizadas no Brasil, mas de assegurar que uma parcela desses recursos seja destinada às necessidades sociais e que a população não seja vitimada pela grande festa do negócio.

Luís Brasilino
Jornalista. Editor do Le Monde Diplomatique Brasil.

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Publicado na revista Le Monde Diplomatique Brasil em 01 de novembro de 2011.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Arrepio

Hoje me peguei arrepiado. Seguinte: estava numa reunião de professores numa ONG no Rio de Janeiro onde estou trabalhando (como professor de Memória e Vídeo). Nesta reunião, os professores apresentaram seus planejamentos para os meses de agosto e setembro. A ONG promove ações em duas áreas que ficam próximas a duas favelas: a da Mangueira (no bairro Mangueira) e a do Morro dos Macacos (no bairro Vila Isabel). Ainda não sei muito sobre estes espaços, mas o fato é que hoje - ao ouvir vários relatos e opiniões sobre as intervenções das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) - um arrepio me tomou conta do corpo.

A Unidade de Polícia Pacificadora é um novo modelo de Segurança Pública e de policiamento que promove a aproximação entre a população e a polícia, aliada ao fortalecimento de políticas sociais nas comunidades.

[http://upprj.com/wp/?page_id=20]

Não sei ao certo explicar. Mas um pouco do que foi falado girou em torno da presença das tais Unidades da Polícia que foram vendidas como uma coisa e se apresentam, hoje, como outra. De acordo com a fala de uma mulher presente na reunião (e também moradora da Mangueira), a proposta era a de trazer - junto com a UPP - também uma série de outros serviços para a comunidade que nunca apareceram de fato. Quer dizer: todas as maneiras de se trazer cidadania e políticas públicas consistentes foram trocadas pela presença policial. É de fato uma diferença e tanto.

O medo, a insegurança e a sensação de despertencimento a uma comunidade que sempre foi a sua é um dado cada vez mais real e predominante. Isso se manifesta, por exemplo, na truculência que venho experimentando em sala de aula por parte dos alunos (crianças da comunidade). Há uma reprodução de violência e uma tentativa (desesperada) de se fazer forte e capaz de lidar com tudo. A isso que chamo de truculência é possível encontrar uma fiel analogia também na ação da polícia (que opera solitária sobre suas próprias regras, trazendo à comunidade uma forte repressão e imposição de valores e normas).

Não há generalizações aqui. Nada escrito pressupõe-se verdade universal e inabalável. Mas é apenas como as coisas me parecem (e sim, por vezes, eles parecem todas iguais).

Escrevi arrepio porque por um segundo, ao expor minhas opiniões, acabei falando o seguinte: que tal política pública - a da implantação de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) - acabava por lacras em áreas marginais (e sem assistência governamental, por vezes em quesitos básicos como saneamento…) a guerra civil que, antes, acontecia em toda a cidade. Disse também que as UPPs me soavam mais um projeto para fora - propaganda - do que uma ação constitutiva da civilidade carioca. Ao invés de se buscar práticas e possíveis soluções para a guerra do tráfico, lacrou-se a guerra num reduto ainda menor que a cidade (alguns bairros, muitas favelas). Em resumo, disse sem querer dizer, que isso a qualquer momento ia explodir.

E uma presente (outra mulher da comunidade) afirmou que isso ia explodir sim, porém, apenas após a Copa do Mundo e as Olimpíadas, visto que até lá a presença das UPPs tinha sentido (quer fosse mais sentido para a maquiagem da cidade Rio de Janeiro do que para as ações votladas às comunidades).

Fiquei arrepiado, como disse. Muito. Meus pelos subiram e enrijecidos ficaram (durante um tempo). Mexi nos cabelos, virei os olhos e tentei encontrar alguma possível saída. Como educar as crianças para a lida com a truculência diária? Como não ensiná-las a devolver tiro quando aquilo que lhes é apontado são mais e mais armas? Um desespero sim. Meus pelos subiram por medo e desespero. Mas, no íntimo, uma ira tão grande. Uma dor ora com cheiro de raixa ora fedendo a injustiça. Eu não soube o que fazer. Eu pensei sobre o nosso país, sobre a cidade, sobre ser tão pequeno e ao mesmo tempo consciente dessa merda toda.

Eu fui embora. Eu, desde que cheguei em casa, não consegui trabalhar. No entanto, agora, pensando sobre o dessassossego, coloquei-me a escrever. Porque uma primeira cena já me veio. Mas optei por deixá-la passar. Vou ficar com os arrepios. Vou ficar arrepiado. Deixar enrijecer não somente os pelos, mas também os cabelos, os neurônios. Quero que meu corpo inteiro fique perturbado com a injustiça do homem sobre si mesmo. Eu ainda aguento, ao mesmo tempo em que não aguento mais.

Como fazer? Fazer diferente.

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segunda-feira, 9 de julho de 2012

Encaixes

As intuições seguem se proliferando. E, aos poucos, por tanto se multiplicarem, começam a se entrecruzar e fazer costura. Não cabe dizer o quanto isso serve ou não. Cabe - neste momento - apenas acompanhar atento a sua movimentação. Portanto, optei por escrever agora nesta postagem alguns encontros de intuições.

Duas intuições se encontraram fortemente e fizeram nascer outra. São elas: 1ª) os filmes do diretor Christopher Nolan a partir do universo das histórias em quadrinho do Batman, super-herói da DC Comics; 2ª) a ópera, gênero artístico teatral que consiste num drama que se encena sendo acompanhado por música. A partir destas duas intuições, ontem à noite, cheguei a um terceiro elemento: o épico.

Citando diretamente um trecho da busca “teatro épico” no Wikipedia:

O teatro épico consiste em uma forma de composição teatral que polemiza com as unidades de ação, espaço e tempo e com as teorias de linearidade e uniformidade do drama, fundamentadas em determinada compreensão da Poética de Aristóteles elaborada na França renascentista. A catarse perde seu espaço na concepção teatral épica. Não cabe envolver o espectador em uma manta emocional de identidade com o personagem e fazê-lo sentir o drama como algo real, mas sim despertá-lo como um ser social. Segundo Brecht, a catarse torna o homem passivo em relação ao mundo e o ideal é transformá-lo em alguém capaz de enxergar que os valores que regem o mundo podem e devem ser modificados.

Há muito o que ser estudado. Mas minha cabeça já produz uma série de relações muito interessantes. Não me assusto com as referências nem com o pré-conceito, por exemplo, que se pode ter de uma referência tal qual Batman. As coisas se entrecruzam justamente para que se chegue noutro lugar. Neste blog, ousarei abrir tudo. Expor cada caminho pelo qual estou me lançando e, naturalmente, sendo tragado.

Registro - hoje - aquilo que me parece o mais importante: o super-herói, a ópera e o épico.

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sexta-feira, 6 de julho de 2012

Reificação

Para começar a falar da “coisa”:

rei.fi.ca.ção

  1. Considerar algo abstrato como coisa material
  2. Representar o ser humano como objeto físico privado de qualidades pessoais ou de individualidade
    • De acordo com marx, considerar o trabalho como uma mercadoria (commodity) exemplifica a reificação do indivíduo.
  3. Transformar o homem ou algo em coisa - objeto de consumo

Fonte: http://pt.wiktionary.org/wiki/reifica%c3%a7%c3%a3o

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Reificação (em alemão: verdinglichung, literalmente: "transformar uma idéia em uma coisa" (do latim res: "coisa"; ouversachlichung, literalmente "objetificação") é uma operação mental que consiste em transformar conceitos abstractos em realidades concretas ou objetos. No marxismo, o conceito designa uma forma particular de alienação, característica do modo de produção capitalista. Implica a coisificação das relações sociais, de modo que a sua natureza é expressa através de relações entre objetos de troca (ver fetichismo da mercadoria). O conceito foi desenvolvido por Lukács e trabalhado também pelos integrantes da Escola de Frankfurt.

Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/reifica%c3%a7%c3%a3o_(marxismo)

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