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sexta-feira, 7 de março de 2014

Rubricas Cena 1 - Sacrifício

Paolo, que havia se posicionado na margem, para ver os amigos mortos sobre a fissura naufragada, senta-se entre margem e planície. Talvez ele sente perto de casa, o vale, sua cova rasa.

Os corpos produzem espasmos. Como gritos finos e contínuos, ou bruscos e interrompidos, não há harmonia. A morte desconhece organização e é linda, mesma em desarranjo. Mais um espasmo. Um lá, outro cá. Os corpos mortos estão nascendo de novo ou, melhor, estão sendo abraçados pela morte.

De súbito, Glória se ergue e permanece ereta, recém-desafogada. Inerte, mira a frente que tem tudo e mesmo tendo tudo não tem nada.

GLÓRIA
é bom demais
para ser verdade


Paolo conversa com ela, mesmo sem olhar nos olhos. Talvez ele se aproxime, mas não consiga acessar o dentro de seus olhos. Ele sabe, é que depois que se morre, o corpo volta primeiro como discurso, como texto, como vômito de tudo que se disse de mais importante, tempos antes de morrer. Eles conversam. Glória mais acelerada, Paolo ligeiramente apaziguado.

Os corpos no chão, eventualmente, como araras, mexem nas penas machucadas, espasmam-se. É a morte ganhando vida enquanto gesto defectível, gesto inominável, ruído, ranhura.

Glória vai ao chão. O corpo não aguenta mais o furor dos desejos interrompidos. Paolo mira um corpo que sobe abrupto. É Virgília, é também Riane, é outro encontro que se refaz acelerado, como se porque tenha sido realmente inesquecível.

VIRGÍLIA
desculpa
uma pergunta


Os olhos não acompanham a velocidade da fala que salta. Talvez por isso pareçam distantes, lá longe, como fossem olhos olhando o acontecimento que hoje sobrevive apenas na memória. Elas se reencontram, mesmo sem estarem olhando - necessariamente - uma para a outra. Quem as costura é o desejo, sobrevivido em palavras.



VIRGÍLIA
não exagera

Riane volta ao chão (RIANE - …) e de súbito de novo emerge.

VIRGÍLIA
tá querendo saber mais o quê
sobre o curso?

Paolo caminha entre os amigos e ergue o corpo latente e doído de quem, hoje ele sabe, de quem ele deveria um dia ter pedido um abraço. Manuela de pé surge aos gritos com Antonisia, que ainda em espasmos, vai surgindo desmanchada e imprecisa.

MANUELA
boicote, antonisia
boicote
...

Discursos na velocidade de luz. Que salta entre as duas mirando-as em escuridão e claridade. Alexandre salta da cova para dentro do mundo.



ALEXANDRE
licença, rapidinho
cês são a professora manuela?



Todos os corpos vão ao chão, exceto o de Paolo, que com alguma curiosidade, vê nos amigos a morte se espraiando. Luz azul iluminando a noite que acorda.