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sexta-feira, 7 de março de 2014

Rubricas Cena 2 - Guerra


Todos de pé, sem necessariamente mirarem-se nos olhos. Os olhos são sempre as últimas partes do corpo a enxergar. Depois que se morre, os olhos sobrevivem um tempo feito bola de bilhar, opacos e fechados, demoram a se corroer e a fissurar. Em morte, demora-se tempo longo até voltar a enxergar. A consciência de quem morre volta sempre através das pontas dos dedos, facilmente carcomidas, pela primeira pele, já exposta e ferida. Eles se erguem, machucados e mortos.

Quando alguém morre, a primeira pergunta que o corpo faz nascer (e talvez seja isso o que cada corpo, ali, inerte, esteja perguntando) é: o que acontece quando a gente vive?

Paolo senta. Os corpos outros também o fazem. Ele se ergue e se distancia, Manuela arde:

MANUELA
foi por isso que eu escolhi vocês
alunos recém-chegados

A primeira coisa que marca o discurso que sobrevive em cada um é a deliberação. Tudo virou palavra. E após o primeiro encontro ter fim, os corpos mortos podem enfim, lentamente, cada qual a seu tempo, tocar num outro semelhante. Eis que Riane toca em Virgília, toque com proximidade, toque que mistura e cola, toque gelatina.

VIRGÍLIA
oi
riane?
taí?

Talvez, mesmo sem que os olhos tenham certeza se estão vendo ou não, talvez mesmo assim os olhos se busquem e se percam. Elas se procuram. Riane regurgita um arrepio que de tão grande pode apenas se manifestar em melodia. Enquanto ela canta, Virgília volta ao chão, buscando refazer a força da própria ossatura.

Riane cessa a cantoria. Elas estão mais próximas do que nunca estiveram. Mas em morte, não sabem disso ainda.

Gotas escorrem do longo cabelo de Alexandre e lubrificam os olhos. Lubrificar, quando em morte, é o mesmo que oxidar, quando em vida. Lubrificar é convidar a matéria a se desmanchar, a se fissurar inteira e lentamente. Convite sem volta. Alexandre olha a gota. Antonisia também a escuta cair.

ALEXANDRE
caraca, irmão
é muita água

Que gesto foi esse que saltou de um desses dois corpos? Algo que não saberia nomear, mas que tenta acelerar o destino já dado, porém não para a frente, e sim para trás. Quer-se lembrar de tudo o feito. Quer-se lembrar do abraço e do beijo. E quanto mais se fala, mais se lembra.

Paolo se deita sobre o colo, recém-acordado, de Glória. Ela vocifera a ele um punhado de palavras, em altíssima velocidade. Ela não sabe e nem precisa saber, mas foi em morte que eles se casaram, construíram casa, cachorro e barriga.