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terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Interlúdio

Paolo

A coisa mais bonita que o trabalho com teatro me permitiu foi aprender a morrer.
Essa é a coisa mais linda.
Isso não é necessariamente magia ou coisa incapaz de explicar: é só uma possibilidade.
É só um desejo. Tudo isso aqui é só um desejo. E como todo desejo: isto aqui é só uma imagem.
Quem trabalha com teatro sempre vai ouvir alguém dizer que por estar num palco como este, em formato esférico, será preciso dar conta de todos os olhos que o miram por todos os lados. Eu sei disso. Já me disseram. Mas eu não preciso mirar todos os olhos porque mesmo sem vê-los eu sei que vocês podem me ver. Eu sinto. E tudo isso eu apenas sei porque  eu estou morto.
Eu estou morto agora, mas mesmo assim, eu estou aqui conversando com vocês.
Morto, de verdade, eu veria tudo isso mas poderia contar  a ninguém o que descobri. Não poderia compartilhar a beleza que é morrer, que é ver por todos os lados a vida, sem segredos. Por isso eu amo meu trabalho. Porque quem morre - assim como eu morri - vira uma espécie de Deus. Um pássaro, por exemplo, ele é livre, mas preso dentro da prisão do ar. O nosso espírito, por sua vez, ele também é livre, mas é livre preso na prisão do corpo. Só que livre, bem livre mesmo, é quando se está morto. Como eu agora.
Morto, tal como es estou, eu posso ver além das paredes. Ver o que está aí dentro, aqui dentro e através dos seus olhos, e dos seus, eu vejo através da sua pele e da sua dúvida também. Quando alguém morre, o corpo morto se desmancha em matéria e abraça o mundo inteiro, porém, não com braços nem mais com mãos, mas tão somente com abraço-partícula. Partícula que de tão pequena só pode morar no vento. "Chamamos de vento esse abraço imenso que costura um mundo". Dar abraço-partícula é muito mais inteiro e aconchegante do que poderia se prever. Eu abraço vocês agora. Eu abraço esta cidade inteira. Eu abraço nosso país e todas as coisas sem nome que ainda não tivemos condições de descobrir.
Esta peça deseja abraçar muita coisa, tocar em muito assunto, em muito sentimento. Deseja acessar arrepios imensos, injustiças tornadas oficiais e sonhos interrompidos, intensos descontentamentos. Eu só estou morto para conseguir nos guiar por todos esses lugares, antes que eu venha a morrer. Por conta disso eu sou alguém que narra a dor.
Eu morri. E por ser alguém morto, eu não precisei mais me preocupar com tempo nem relógio, nem com casa propriedade chão nem teto, eu perdi todo e qualquer limite e passei a viver de novo enquanto acontecimento.
Eu estou aqui com vocês agora, vocês me vêem? Eu estou morto e só por isso posso contar a vocês a história de algumas vidas, como foi a minha, como ainda é a de vocês, como foram outras que já passaram por aqui e que ainda hoje sobrevivem acariciadas em morte.
Acompanhem-me, por favor.
Eu lhes peço.