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quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

A realidade enquanto ação dramática

Ontem fizemos o primeiro encontro voltado para a efetiva criação de nosso novo espetáculo. E, prezando aquilo que nos interessa, foi obviamente mais que um encontro, mas também uma comunhão de incômodos e um compartilhar profundo de pontos de vista acerca do mundo, de nosso ofício e de tudo aquilo que nos faz estar presentes em torno desta criação. Concreto armado nos surge enquanto saldo de um percurso. Não escrevo isso com intuito de situar esta criação dentro de uma trajetória a qual se deva fazer mesura. Não isso. Escrevo porque acredito que para compreender o instante é preciso sair dele e olhar de longe, com olhos de satélite. Há uma especificidade neste projeto que encanta e apavora, que seduz e traga ao fundo (profundo profícuo abismo).

Pela primeira vez, em cinco anos de trabalho voltado ao Teatro Inominável, eu me vejo desde o início - desde a primeira intuição (intuições de guerra) - mais colado com a vida em sociedade do que com algum simulacro seu, do que com alguma mera fantasia, ficção ou invenção. Não escrevo a partir de pressuposto de qualidade, valor ou coisa assim. Mas neste espetáculo o tema central que se espreita escorre vida afora, pelas ruas, jornais e por entre nossos passos e discursos. Como criar aquilo que me dá base e confere o tom dos meus dias? Como falar de algum discurso se o próprio discurso já se prendeu ao meu peito e a minha língua?

A sensação é única: desconforto. Puro e retinto, como noite sem estrela. Estamos querendo criar aquilo que mora antes de nós, que mora já no mundo. Então estamos falando de criação ou revolução? Os ânimos se exaltam e o dessabor ante ao mundo é capaz de minar também o desejo criativo. Percebem? Há uma sobreposição de desejos que se costuram e se repelem: a criação quer mudar o mundo (e o artista quer mudá-lo também). Dupla intenção. Excesso de literalidade (aquilo que fazemos é o que queremos fazer). Isso deveria ser bom, mas cega os olhos e fere a sensibilidade, porque o mundo anda doente e mexer nele nos evoca estado constante de febre.

Para falar do Rio de Janeiro, em ano de Copa do Mundo, eu preciso olhar de qual ângulo? Mas, se de onde eu olho eu me vejo também olhando, que distância pode me salvar da confusão que é se ver tanto artista quanto cidadão? Estas palavras me confundem e, ao mesmo tempo, são o sintoma nítido e nebuloso da minha confusão. Vamos tentar por outro começo.

O assunto que estamos falando não é o amor impossível entre Nina e Konstantin, tal qual Tchékhov especula em sua obra A gaivota (ele especula isso?). Não estamos falando do príncipe Hamlet e de sua Dinamarca envilecida. Nada disso. O nosso assunto é onde a gente vive, as nossas indagações antes de serem jogadas em sala de ensaio, já se estimularam pelo trajeto casa-nossa-até-sala-de-ensaio. Há um único lugar no qual se mistura vida e criação. Por isso talvez falemos tanto em performance, no já clichê (posto seja verdade concentrada) do aqui-e-agora. Percebam, o aqui e o agora são também o aqui e agora quando estivermos nos apresentando (ou melhor, quando estivermos sendo esta peça). Não há sequer diferença prevista entre hoje e o amanhã: estaremos sempre à prova, em cena ou fora, porque tudo é sobre o mundo, tanto a criação, quanto nossa existência. Há um único tempo: este agora no qual eu estou falando sobre a rua e criando suas dinâmicas noutro rumo, possivelmente imprevisto à ordem do dia.

Volto então as intuições minhas enquanto artista aqui neste Brasil de hoje. Faz muitos anos tenho me apegado mais e mais na força imensa que é a ficção. Se quero falar de mundo, falo então daqueles que - presos na minha história inventada - vivem o mundo (do qual quero falar). Tudo indireto, mas para chegar mais fundo e longe. Em uma de nossas peças, Como cavalgar um dragão, eu tentei escrever uma dramaturgia que pudesse oferecer a minha vida uma solução que eu não pude ter. Então a dramaturgia veio como invenção de um mundo no qual eu aprendesse junto - e com meus amigos - a sobreviver ao suicídio de alguém comum a todos nós. Em ficção, eu vivi uma parcela da minha vida que sequer aconteceu. Mesmo assim, aconteceu. E mais: repetidas vezes. E muito mais: sob muitos olhares que não somente o meu. Virou mundo e doação.

Fiquemos então na ficção. Nesta força imensa que é se especular enquanto outro possível. Tem uma coisa que só a criação artística pode fazer por nós: nos deixar frente a frente com a morte. Recriar, de forma deliberada e efetiva, outro tipo de encontro. Outro tipos de relação. Vida(s). Outros possíveis, tanto como impossíveis. Não há limite previsto. O impossível já está dado e tem hoje por nome realidade. Pois então vamos nos proteger no cobertor da ficção para que possamos dar conta desta vidinha amarrada a tenebrosos dias.

Eu queria e ainda quero muito contar a história específica dessa professora universitária e desses seis alunos. Mas isso não é tudo, porque é geral demais. Então, começo a pensar no que ela está fazendo agora, nesta noite de quarta-feira, meio quente, meio no meio do Rio de Janeiro, na janela, em casa, tomando uma coca-cola e fumando um cigarro. Quero pensar num dos alunos preso dentro de um ônibus engarrafado (como eu estive hoje durante mais de duas horas). Quero pensar no outro amando em desmedida e tentando se manter acordado sobre o texto que precisa ser lido até quinta (diferente de mim). É nessas minúcias que o homem enquanto ser se anuncia e desvela. Não quero falar do homem, quero falar dele e dela. Das unhas carcomidas e dos sonhos interrompidos (quais sonhos?). Dos pesadelos, medos concretos e abruptos. Quero falar da música que rodeia as orelhas e faz do mundo lugar mais ameno do que aparenta.

A realidade virou nossa ação dramática e, como tal, já sabemos, precisa ser reconstruída. Queria convidar vocês a entrar na sala de ensaio sem querer dar conta do mundo, mas apenas reféns da diferença que é o sumuadubo do nosso encontro. O mundo muda quando estamos reunidos, portanto, não vamos deixar o mundo estabelecido esmorecer a nossa potência.

Creio então que a nossa ação é dramática desde que estejamos juntos.

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Ao som de HAIM - Let Me Go (repetidas vezes):